MADEIRA: Notas sobre o ‘período jardinista’ (1978 -2017)…
A situação da Madeira, aquando do 25 de Abril, era semelhante ao resto do País, agravada com as ‘condições de insularidade’. O País estava, então, exaurido por uma arrastada guerra colonial, em várias frentes, isolado internacionalmente e confrontado com as inglórias tentativas de sobrevivência de um caduco e caótico ‘Estado Novo’ que de novo só mantinha a fantasiosa designação.
O advento do novo regime democrático saído do 25 de Abril vai encontrar a Madeira num trágico e agónico impasse. As ‘condições nacionais’ influenciam diretamente a situação insular e, pior, são exponenciadas pela descontinuidade geográfica que funcionam como um acelerador de fraturas económicas e sociais incontroláveis.
O advento do novo regime democrático saído do 25 de Abril vai encontrar a Madeira num trágico e agónico impasse. As ‘condições nacionais’ influenciam diretamente a situação insular e, pior, são exponenciadas pela descontinuidade geográfica que funcionam como um acelerador de fraturas económicas e sociais incontroláveis.
Mas a Madeira tem outros ingredientes específicos e particularidades (insulares) que caracterizam e agravam a situação económica e social regional, bem como serão influenciadores do desenho de soluções políticas que o novo regime de Abril veio abrir.
A Madeira - praticamente - não conheceu a industrialização. As poucas fábricas que a ilha conheceu (os engenhos) concentraram no sector agro-industrial e resumem-se à indústria açucareira, desde tempos coloniais, um feudo dos ingleses. Por outro lado, as atividades agrícolas que evoluíram por ciclos, conforme os ditos ‘mercados exportadores’ iam determinando - excetuando os vinhos que necessitam de alguma manufatura local - dizem respeito a ‘produções diretas’, muito condicionadas pela orografia acidentada típica da Madeira.
Com o 25 de Abril para além da autonomia – transversal a todas as formações partidárias – existia o secular problema do regime de colonia e este também viria a transformar-se numa preocupação transversal.
A Esquerda estava ‘amarrada’ a um notável texto de 1969 (‘Carta a um Governador’) que muito embora reivindicasse à cabeça um estatuto autonómico para a Madeira reunia outros consensos à volta de reformas urgentes e necessárias congregando um vasto leque conhecido como ‘a malta do Comércio do Funchal’ (Vicente Jorge Silva, António Loja, José Manuel Barroso, entre outros).
Entretanto começaram a sair à rua vários movimentos de índole regionalista de que são exemplos, o ‘Movimento de Autonomia das Ilhas Atlânticas’ (MAIA), a ‘Frente Centrista da Madeira’ (onde já se encontra Alberto João Jardim), o ‘Movimento Democrático da Madeira’ (MDM) (reminiscência da candidatura Oposicionista de 1969 e uma replica regional do MDP/CDE), a União do Povo da Madeira (UPM) (uma deriva popular e esquerdista de uma fação do núcleo do Comercio do Funchal).
Todos estes movimentos eram regionalistas e autonomistas lutando por se implantar localmente como partidos madeirenses. Quando no Verão de 1974 aparecem à luz do dia os novos partidos nacionais (PPD e CDS) gerou-se alguma confusão já que começa a ser notório que partidos regionalistas – por uma questão de coesão nacional - não seriam tolerados.
A partir deste pressuposto ocorre uma grande jogada porque a Frente Centrista da Madeira, claramente de Direita, formada por integrantes de uma tertúlia nascida e alimentada no célebre Golden Gate, com ligações viscerais à burguesia funchalense, integra-se de imediato no então recém-criado PPD de Sá Carneiro e, com esse passo, ganha um decisivo avanço na arrumação das forças partidárias madeirenses.
Por outro lado, a Esquerda que, no período imediato pós-25 de Abril, tinha ocupado posições nas estruturas governamentais e administrativas regionais divide-se à volta de questiúnculas ideológicas, disputas doutrinárias e vai sendo expulsa dos centros de decisão por ‘arruadas’ encomendadas e fabricadas.
Quer o Governo Civil, quer a Junta Geral, órgãos agonizantes e sobreviventes do regime derrotado, ocupados - transitoriamente - por gente do MDM (Fernando Rebelo e António Loja), esboroam-se para dar origem à Junta Administrativa da Madeira presidida pelo Governador (Carlos Azeredo) e onde tinham assento 6 vogais (Rui Vieira, Ribeiro de Andrade, Jaime Ornelas Camacho, David Caldeira, Monteiro de Aguiar e Evangelista Gouveia) cuja composição se esconde ser maioritariamente formada pela novel secção madeirense do PSD.
Aliás, era uma Junta tão ‘alargada’ e orientada que até incluía no seu seio o futuro Presidente do Governo Regional (Engº. Ornelas Camacho). Por outro lado, a Junta da Madeira teve a função de ‘defenestrar’ alguns democratas madeirenses (Fernando Rebelo, António Loja, Pe. Paquete de Oliveira, entre outros).
Para além desta ‘reviravolta’ a Junta (afeta ao novel PSD-M) vai receber um inestimável apoio – o da Igreja – traduzido pela permanente intromissão na política e na comunicação social, do então bispo do Funchal, D. Francisco Santana, na realidade, o patrão de Alberto João Jardim, no Jornal da Madeira e um esteio das forças mais reacionárias da Ilha.
É esta Junta que vence as primeiras eleições regionais num ambiente de tensão, mas festivo, onde a Autonomia constitui uma visível aposta da burguesia madeirense, essencialmente a de matriz urbana, acoitada no PSD-M, já que a vertente rural, decrépita e encurralada pela questão da colonia, tende a apostar no CDS.
Na realidade, a burguesia urbana autóctone vivia das sobras do ‘banquete inglês’ e era constituída por sectores ligados às profissões ditas liberais (advogados, médicos, engenheiros), professores e um restrito número de funcionários públicos (dirigentes superiores e intermédios). De realçar que muita desta ‘burguesia ascendente’ estava (ou tinha estado) ligada ao Estado Novo, através da União Nacional ou de organismos corporativos. Não é inocente que quer o tio de Alberto João – o Dr. Agostinho Cardoso (editor do periódico ‘Voz da Madeira’) ou o Dr. Alberto de Araújo (advogado do Grupo Blandy e diretor do Jornal de Notícias do Funchal), que viriam a digladiar-se na comunicação social, tivessem sido dirigentes regionais da União Nacional (e deputados na Assembleia Nacional) movimento ideológico criado por Salazar para suporte de uma ditadura pessoal, com tentaculares extensões territoriais, incluindo as insulares.
Concomitantemente, a burguesia rural, ou estava agonizante, ou alinhava com os círculos urbanos, já que a longa vigência do regime de colonia, entrecruzadas ligações matrimoniais e busca de representação social, a tinham de certo modo urbanizado, embora sem conseguir adotar o cosmopolitismo da cidade (cabe aqui referir que os madeirenses dividiam-se entre os ‘vilões’ e os da ‘cidade’). Esta burguesia rural cercada acabaria por incorporar o PSD-M.
A Esquerda madeirense que desde 1969 (Carta a um Governador) e até ao 25 de Abril viveu num limbo oposicionista ao Estado Novo, vagamente unitário, dadas as circunstâncias isolacionistas da insularidade, concentrava-se, nos anos 70, no núcleo do ‘Comércio do Funchal’ e deixou-se enredar, nos primórdios do regime saído do 25 de Abril, em questões fraturantes e dissolutas de que a ‘evolução suicidária’ deste núcleo é bem representativa. Mais do que combater uma Direita em fase de reorganização (municiada por um súbito sentimento autonomista) a Esquerda gastou muito do tempo e muitas das suas forças a digladiar-se entre si.
Em 1974, 75 e 76 repetiram-se situações e fenómenos insulares que têm antecedentes na remota implantação da República quando se verificou uma inusitada e feroz resistência à mudança de regime, centrada nos meios católicos rurais, com forte expressão paroquial, onde o caciquismo político misturava e confundia a sua intervenção com os poderes clericais.
A Esquerda madeirense pulverizada e radicalizada foi facilmente controlada pelas forças conservadoras onde a conjugação do PSD-M com a Igreja pontificou, inviabilizando uma coerente acção política regional onde o anticomunismo primário associado a (ancestral) reivindicação autonómica, veio ocupar a centralidade do debate e dos programas partidários e abrir o caminho a Alberto João Jardim.
Mas a Autonomia tinha outras condicionantes e implicava o exorcizar, de antemão, o ‘feudo inglês’, muito embora a expressão económica deste, nos anos 70, fosse já reduzida.
É muito elucidativa desta situação a pretensão manifestada, nos anos 60 e 70, pelos proprietários ingleses para encerrar a ‘fábrica Hinton’ (engenho do Torreão) por manifesta perda de competitividade e rentabilidade.
Uma outra família - os Blandy - que tiveram um impacto crucial na economia madeirense nos séculos XIX e primeira metade do XX, aquando do 25 de Abril estava, também, numa fase decadente. Tendo ocupado uma posição de relevo no sector vinícola, na navegação e nas finanças regionais (o Banco Blandy é um exemplo disso) na alvorada do 25 de Abril o ‘grupo Blandy’ era já uma sombra daquilo que tinha sido no passado. Em meados do século XX os madeirenses tinham duas opções: ou arranjavam emprego no grupo Blandy, ou emigravam.
Finalmente o grupo empresarial do Leacock (outro dos membros da 'feitoria') que teve decisiva importância na área dos transportes coletivos, distribuição automóvel e até dos vinhos entrou em contração e desviou as suas intenções e investimentos para o Turismo e hotelaria, alguns deles fora da Madeira.
De qualquer maneira, a ‘bandeira antibritânica’ foi içada não porque fosse uma realidade ou uma ameaça à autonomia mas porque servia os propósitos da Direita madeirense no desbastar de caminho para criar condições para substituir a decadente ‘feitoria inglesa’ por uma burguesia madeirense (fica por esclarecer se nova ou velha).
Portanto, a saga autonómica do PSD-M empola um sentimento regionalista – com uma longa e conturbada evolução fora da sua génese - associado a uma matriz antibritânica mas, essencialmente, ‘anti-continental’ (Lisboa/Terreiro do Paço) e, acima de tudo, trilhando um outro caminho ‘politicamente mais produtivo’ à boa maneira de todas as formações partidárias de Direita: um anticomunismo primário, feroz e, por arrastamento, uma rejeição de tudo o que cheirasse a marxismo e socialismo, a par de uma desproporcionada exaltação da componente religiosa traduzida por uma vaga abertura à ‘doutrina social da Igreja’ apresentada como ‘nova’, mas reportada à ‘Rerum Novarum’, isto é, a uma encíclica papal de 1891 (Leão XIII).
Aliás, perante a volatilização da Esquerda madeirense, dividida entre as correntes ideológicas que vão desde as ortodoxias sociopolíticas até ao maoismo, que se entreve numa rocambolesca disputa do controlo do Comércio do Funchal, distraindo-se dos problemas da população madeirense ansiosa por Autonomia e exigindo perentoriamente o fim do contrato de colonia.
Grupos como a União do Povo da Madeira (UPM), conseguiram mobilizar algumas ações de rua (p. exº. a ocupação do Seminário) mas rapidamente foram ostracizados por uma população com um ancestral rasto conservador que não entendia a linguagem e, pior do que isso, receava as finalidades e objetivos.
A Frente Popular e Democrática da Madeira (FPDM) que agrupava parte do clero progressista e simpatizantes da Esquerda socialista e marxista, era uma formação concorrencial da UPM e não teve condições para se afirmar e como corolário sofreu de uma existência efémera.
Finalmente, a Esquerda não percebeu o alcance da nomeação de um bispo ultraconservador para o Funchal, de sua graça, Francisco Santana. Não foi capaz de denunciar as suas constantes intromissões na vida política madeirense (p. exº. as indicações de voto) nem de contrariar o permanente imiscuir do ‘Jornal da Madeira’, órgão diocesano de comunicação social, na vida política da Madeira, donde viria a sair o presidente do Governo Regional, durante 43 anos (!).
É esta estratégia conjugada de Autonomia com um simulacro de regionalismo, visando substituir o domínio dos ingleses pela burguesia madeirense, apoiada pelo sector religioso mais retrógrado, que vai definir a política madeirense desde 1976 até ao presente. O exemplo das empresas controladas, direta ou indiretamente, pela família de Jaime Ramos (dirigente do PSD-M) é uma paradigmática manifestação das ‘mudanças económicas autonómicas’ que escondem no fundo subterrâneas relações com grandes empresas e interesses ditos ‘continentais’.
De resto, durante a longa vigência da presidência de Alberto João Jardim no Governo Regional (GR) o investimento público em infraestruturas foi grande e diversificado (aeroporto, marinas, pavilhões gimnodesportivos, viadutos, túneis, vias rápidas, etc.) mas a pergunta que subsiste é: para servir quem e o quê?
De certeza que não foi uma aposta numa economia débil, muito pouco diversificada, tremendamente subsidiária dos fluxos turísticos, ou de uma atividade agrícola tradicional, penosa e estagnada (vinho, bananas e cana-de-açúcar, etc.) muito aquém da capacidade de utilizar o volumoso esforço estrutural desenvolvido.
Hoje, é notório que a extinção do contrato de colonia (uma reivindicação da Esquerda adotada por A J Jardim) deveria ter originado uma reestruturação fundiária que potenciasse a aptidão agrícola. Nada disso foi feito.
A grande mistificação jardinista foi o conceito de ‘Madeira Nova’ como sendo um natural sucedâneo à ‘Madeira Velha’. Ao fim e ao cabo mudaram as moscas…
As ‘velhas famílias madeirenses’ (rurais e urbanas), foram paulatinamente associando-se aos ingleses, quer pelos negócios, quer por iníquos mecanismos hipotecários, quer por laços matrimoniais. O que se verificou, com o ‘jardinismo’, foi a substituição da burguesia inglesa colonialista e com tiques elitistas, por uma outra elite de cariz regional, aparentemente multifacetada, mas cheia de amarras e subsidiária de uma máquina administrativa regional omnipresente (o GR é o maior empregador da Madeira) e, também, da tradicional hierarquia católica. Uma elite povoada de ‘patos bravos’ e de ‘investidores’ locais nas ‘sobras turísticas’ (permitidas ou toleradas pelas multinacionais estrangeiras) e enfeudada ao declínio económico da Ilha. As respostas jardinistas à visível decrepitude económica foram as ‘Sociedades de Desenvolvimento’ (Metropolitana, Norte, Oeste, Porto Santo, etc.) cuja ação se caracteriza pela mobilização volumosos capitais e os resultados a roçar a nulidade (exceto no que diz respeito ao galopante endividamento da Região).
A emigração continuou a acontecer e os madeirenses ficaram com a opção de serem bons católicos (não afrontando os ancestrais vínculos da hierarquia religiosa), trabalharem direta ou indiretamente para um omnipresente Governo Regional (que substituiu os ancestrais ‘feitores ingleses') e, finalmente, contentarem-se com melhores padrões de mobilidade num espaço confinado (uma ilha). Em termos de desenvolvimento económico regional e para a população madeirense em geral, nada de novo (…na frente ocidental).
O ‘jardinismo’ proporcionou – com laivos autoritários e de modo prolongado – esta transferência política e económica a que chamou ‘Madeira Nova’. Nada de novo acrescentou à camaleónica capacidade de adaptação de Direita que invocando formalmente a social-democracia, transitou de forma desabrida pelo populismo e ainda teve tempo e espaço para passear pelas margens do independentismo (FLAMA).
Alberto João Jardim foi manobrando à sombra de chicanas autonómicas ao longo da sua permanência como presidente do Governo Regional e enfrentou diversas questões como, por exemplo, a Lei de Finanças Regionais (2007) onde resolveu afrontar o Governo da República demitindo-se e, logo de seguida, recandidatando-se ao cargo. O que estava em causa eram problemas de insularidade (reais) mas, para além disso, a capacidade (autónoma) de contrair empréstimos.
Esta última parte – o controlo do endividamento - colocava em causa toda a ‘vertente populista jardinista’ e representa o ‘canto do cisne’ do modelo de governação desenvolvido (como aliás se veio a verificar).
Anos mais tarde A J Jardim viu os seus próprios correligionários afastarem-no da liderança política regional mas nunca aceitou o esgotamento do seu programa e, na sombra, continuou a insistir no insólito ‘modelo jardinista’, defendendo um eterno status quo para a Madeira pós-25 de Abril.
As catadupas de incidentes regionais de que a dívida da Madeira não é estranha, começaram a minar um poder regional que foi longamente exercido de maneira autocrática, está corroído por uma insofismável usura e longe da obtenção de resultados económicos palpáveis.
E o resultado das eleições regionais de Setembro 2019 confirma esta 'fadiga do exercício do poder regional' muito embora as aparências possam sugerir o clássico aforismo lusitano diante do assédio napoleónico: “…Tudo com dantes, Quartel-general em Abrantes”.
Na realidade, nada será como dantes e começou a contagem decrescente para outras soluções à volta do ‘caso madeirense’. O acordo PSD-M/CDS celebrado no Funchal em 8 de Outubro 2019 é pura e simplesmente o epílogo do 'jardinismo' e nada trará de novo para os madeirenses. Aliás, é um acordo artificial que envolve exclusivamente as cúpulas partidárias porque nas bases – na militância de ambos os partidos - o ódio é ancestral e mútuo. E não augura nada de bom.
Comentários
A História da Madeira no regime democrático continua desconhecida dos que AJJ chama cubanos. Mesmo os mais atentos desconhecem muito do que fica dito neste texto. Obrigado.