A guerra que não sai dentro de nós

Fui dos mais medrosos e dos que menos riscos corri, mas não se esbate a raiva que há de levar-me, a afronta diária que sofro ao ver transformados os combatentes que fomos, vítimas da guerra colonial, em “Heróis do Ultramar”, na toponímia e nas estátuas de soldados enormes com um menino negro aos ombros, em pseudo-homenagem.

Esta forma insidiosa de reescrever a História, de branquear a ditadura, que encontra eco em quem sofreu a inclemência da guerra, é a porta por onde passa à sorrelfa a ideologia de extrema-direita, que absolve a ditadura .

Julgam que não sofri ao ver chegar pacíficos portugueses, alguns da minha família, que a descolonização tardia transformou em refugiados na própria pátria, alguns em difíceis situações, só minimizadas pela solidariedade do povo que somos e soube, como nenhum outro, integrar!?

Fui recebido em Nampula por uma prima-direita de meu pai e marido, funcionários dos Correios em Nampula, com grande estima. Quando lhes disse em 1968 ou 69, depois de a guerrilha se ter estendido a Tete, que preparassem a vinda, riram-se e disseram-me que a guerra só não acabara porque os militares ganhavam rios de dinheiro, e não careciam de tropa para se defenderem. Julgam que não me dói a hostilidade com que me trataram, depois do regresso, salazaristas tardios, por acharem que a independência das colónias foi obra dos comunistas com os quais sempre me conotaram?

Alguém imagina o que sofre um homem a quem desapareceu um camarada nas águas revoltas do Zambeze quando a jangada se virou e uma centena de pessoas se afogaram ou desapareceram, como foi o caso? O que fica na memória quando outro camarada que acabara de almoçar à mesma mesa, exalou o último suspiro nos seus braços, esmagado pela Berliet em cujo guarda-lamas insistiu sentar-se e mandou o condutor arrancar, ainda dentro do quartel?

Por ser amigo de um capataz dos Caminhos de Ferro, fui indigitado para lhe prestar a derradeira homenagem, dar ordem de fogo à salva de tiros ao civil morto com uma granada de bazuca, à queima-roupa, em pleno peito e que da parte superior do tronco só ficaram despojos espalhados por dezenas de metros que a zorra em que foi emboscado ainda percorreu, despojos recolhidos com terra e metidos na urna.

Imaginam como fica a sangrar por dentro quem, a seguir aos tiros, viu chegar um velho de cerca de sessenta anos, a pedir, por amor de Deus, que lhe deixasse dar o último beijo na testa do filho, na altura de fazer sinal para descer o caixão e, com lágrimas e o olhar, faz prosseguir a cerimónia, com o homem ajoelhado e desfeito?

Pode-se imaginar o que me doeu ler de um íntimo amigo, humanista, o único camarada que encontro com frequência na mesma cidade, um remoque ao aproveitamento político que julgou ver na denúncia do massacre que ocorreu 13 meses antes da nossa chegada, na área do nosso Batalhão, para acabar a corroborar o que sei ser verdade: «Porque não referir a acção que o Múrias [já falecido] e eu tivemos quando chegámos a Massangulo no inicio da comissão e demos com o capitão dos "Kokuanas" e outros militares, a torturar dois prisioneiros, pendurados nas traves do teto, e nós interviemos, ameaçando o capitão (que mal conhecíamos) de que o nosso comandante era contra aquelas atitudes e que ele corria o risco de se ver mal, se entregasse os prisioneiros no Catur, naquele estado.»

Era preciso serem homens bem formados para tomarem tão corajosa atitude junto de um capitão, que ali estava há muito, por alferes acabados de chegar, mas é este silêncio que quase todos guardamos que nos torna cúmplices dos que querem silenciar os horrores de uma guerra e os crimes de um regime que descartava a morte das vítimas da guerra no lacónico telegrama que a imagem documenta.

Em dezembro perfazem-se 50 anos que saímos da guerra, e a guerra não sai de nós, nem os afetos que o degredo, o medo e a ansiedade exacerbaram. Não há remoques que os debilitem.

Para o ano lá estaremos os que ainda pudermos porque são indestrutíveis os laços que nos amarram.

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