O meu ingresso no Liceu Nacional da Guarda (Crónica)

Fiz a instrução primária no Cume, sede da freguesia de Vila Garcia, que incluía Cairrão, Carapito da Légua e Quinta do Ordonho.

O exame da 3.ª classe, ah! pois, havia exame do 1.º grau na escola primária, não era só para adultos, e fui prestar provas a Vila Fernando onde a D. Marianinha e a minha mãe fizeram parte do júri. Não acusem o júri de nepotismo por ter a mãe do candidato como vogal. Além de bem preparado, ia muito bonito, esta segunda parte é suspeita, era a mãe a falar. Levei um casaquinho de mangas curtas que sempre atribuí a falta de pano e que a minha mãe afiançava que se usavam e me ficava muito bem. Que saudades da mãe, do casaco, não tanto.

O exame da 4.ª classe teve lugar na escola Adães Bermudes, na Guarda, onde voltaria como aluno-mestre da EMPG. O presidente de júri era o prof. Barata que dava aulas em Gonçalo, de onde a população o escorraçou, a ele e ao padre Joaquim, o Calhordas, nas eleições do Delgado, por terem substituído os votos do general por outros, do almirante. Foi preciso a GNR ir salvá-los para os levar para a Guarda e resguardar-lhes o lombo.

O padre foi parar ao colégio de S. José e o prof. Barata à Direção Escolar, promovido a adjunto do diretor. Quando aconteceu o 25 de Abril, duas décadas depois, o diretor foi saneado e ficou o Barata interinamente Diretor Escolar, função que acabaria definitiva, até à reforma. Mas isso são outras histórias que só marginalmente entram na minha biografia.

Fiz o exame da 4.ª classe, já o disse, e fiquei Aprovado com Distinção, o que era vulgar nos alunos da minha mãe, e devia ser uma grande honra porque os ministros de Salazar referiam o facto no currículo, com a vaidade com que muitas décadas depois o ministro Relvas exibia a licenciatura em Direito, por equivalência.

Depois desse exame fiz a prova escrita de admissão ao liceu num edifício muito grande, onde viria a ser aluno no dia 1 de outubro de 1953, no 1.º D. O número 1 era o Abílio Aleixo Curto e o 38, o último, o Francisco Jacinto Branco Velho. As turmas, ordenadas por letra alfabética, eram como se vê, pequenas.

Vários dias depois, num sábado, alguém bateu à porta de casa quando todos estávamos já deitados. Ó senhora professora! Ó senhora professora! E a minha mãe lá se levantou a saber quem era. Era um homem da Gata a quem pediram para dizer à professora do Cume que o menino dela, o menino era eu, tinha passado na prova escrita e iria à prova oral na segunda-feira. Alguém tinha vindo da Guarda à Gata, a pé, que era o meio de transporte habitual, pura generosidade, a pedir a uma pessoa da Gata para se deslocar ao Cume a dar o recado. Dividiram o caminho a meio e cada pessoa percorreu duas boas léguas na ida e volta.

É fácil calcular que o Cume, não tendo luz elétrica, água canalizada ou saneamento, não tinha telefone. Só tinha uma fonte de mergulho. As únicas infraestruturas eram a igreja e a escola, tendo esta, cheia de buracos no soalho, e onde chovia no meu tempo de aluno, ruído com a chuva de inverno numas férias de Natal. Só uma parede ficou de pé. Ali só chegava a religião, vinda de Casal de Cinza, de moto, com o padre Faria, para dizer missa ou levar o viático ao domicílio, aos moribundos. Até para encomendar sapatos, quem tinha posses, precisava de deslocar-se a Carpinteiro a tirar medidas aos pés, desenhados os contornos em papel pardo, a lápis, pelo sapateiro.

Volto agora ao exame de admissão. O meu pai estava em Bragança onde fora colocado na nova categoria a que ascendera no concurso de funcionário de Finanças.
Recebida a notícia de que tinha a oral marcada para o primeiro dia, o raio de ter Alfredo como primeiro nome, levou a minha mãe a preparar a ida e a dar instruções à Dulce, de 13 anos, para os dias da ausência, a fim de que as três miúdas que ficavam, ela e as minhas irmãs, de 8 e 4 anos, respetivamente, se amanhassem.

Domingo, depois do almoço, a minha mãe e eu lá fomos a caminho da Guarda, a calcorrear as duas léguas que nos separavam, sem necessidade de me falar das matérias de estudo, pois não havia rio ou afluente que me escapasse, linha de caminhos de ferro ou ramal que ignorasse, serra, cabo ou baía de que não soubesse o nome, rei de Portugal e filhos legítimos ou bastardos de que me esquecesse. Aliás, a oral era o meu forte, não havia erros de ortografia, única coisa onde podia claudicar, e em aritmética era águia.

Poupo os leitores aos problemas intestinais que me assaltaram por alturas dos Galegos, com a minha mãe impaciente para chegar à Guarda. E ao nervoso de ambos.

Entrámos pelo Bonfim, subimos a estrada em direção à R. Dr. Francisco dos Prazeres e, antes do cruzamento, na única casa do lado direito, depois da quinta dos Plomes, penso que era este o nome, vi a minha mãe bater a uma porta e chamar, ó Maria Alice! E logo surgiu à janela uma senhora que me pareceu ter ficado satisfeita, ó Mariazinha, e logo a porta se abriu. Bastou esticar o cordel que puxava o pincho.

Era uma antiga colega, mulher do sr. Zeferino, colega de meu pai, que logo nos garantiu quartos e comida. Eram férias, e os hóspedes, se os tinha, estavam ausentes.

No dia seguinte fiz a prova oral. Foi o terceiro exame, com prova escrita e oral, de um garoto com 10 anos e 4 sacramentos canónicos. Disseram que foi um lindo exame. De facto, fiquei nos primeiros lugares, mas nesse dia só soube que fiquei aprovado. Bastou para voltar ao Cume, com a mãe satisfeita e desejosa de saber como estavam as três meninas que ficaram em casa.

Os dez quilómetros percorreram-se num ápice.

Coimbra - Outubro/2019

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

rui esteves disse…
Estas recordações, de que gostei muito, se levassem um pouco mais daqueles termos antigos que caíram em desuso há 50 anos, passavam muito bem como uma historieta do Aquilino.
Rui Esteves:

Sou um grande admirador e razoável leitor de Aquilino, mas não queira comparar o mestre com o aprendiz.

Obrigado pelo comentário e pela paciência de ler tão longo texto.

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