Legislativas de 2019, o XXII GC e a espera de Godot...
A peça de Beckett (‘À Espera de Godot’) será uma belíssima ilustração dramatúrgica do nosso incompreendido, mas persistente, ‘sebastianismo’.
Em Portugal, estamos sempre à espera de que aconteça ‘qualquer coisa’ que podemos tentar resumir no amplo conceito denominado ‘bem-estar’ e essa pretensão começa na componente educacional e nas relações socioprofissionais, passa pelo crescimento pessoal, sentido de vida, autoestima e na autonomia individual (Liberdade) que desejaríamos só condicionada por um amplo sentido de justiça e, necessariamente, estas premissas desembocam em questões coletivas, como a solidariedade social, o desenvolvimento ‘sustentável’, o controlo sobre o ambiente, enfim, uma incessante caminhada para a realização e de busca de felicidade […], isto é, um pouco o velho e providencial ‘welfare state’. É neste contexto que estamos condenados a ficar sentados...‘à espera de Godot’.
Os resultados das eleições legislativas de 2019 traduzem, de certo modo, todos estes anseios e estas inquietações mas, este percurso têm, como sabemos, um passado, uma carga histórica e um contexto. Não podemos alimentar a pretensão de, cada 4 anos, voltarmos a ‘inventar a roda’ ou colocar o ‘conta-quilómetros a zero’.
As últimas eleições foram, como é habitual, o escrutínio de governação da anterior legislatura e a avaliação das propostas partidárias (velhas e novas) para a próxima. E traduzem sempre um clássico saldo entre o deve e o haver.
Vamos ater-nos ao escrutínio e nas consequências futuras, nomeadamente, em relação à morte ou à sobrevivência da ‘geringonça’.
Há 4 anos quando a situação era complexa e depois de um período negro de governação da Direita (PSD/CDS) em ‘festiva’ colaboração com instituições financeiras internacionais, conotadas com as doutrinas neoliberais, foi possível desbloquear esta situação com recurso a um conjunto de entendimentos pontuais (as ‘posições conjuntas’) entre os partidos de Esquerda representados no Parlamento, o que permitiu a governação do PS.
Tratou-se de uma resposta imediata e táctica às veladas ameaças manifestados pela Direita de - face aos resultados das Legislativas de 2015 – de continuar a governar (através de acordos acenados por Passos Coelho e Portas ao PS). A urgência da resposta às manobras da Direita necessitou, para ter sucesso, de deixar de fora questões onde sempre existiram clivagens como a União Europeia, a participação na NATO, o modelo de desenvolvimento social e económico, as Reformas (verdadeiramente estruturais), para citar as áreas mais sensíveis.
A primeira mistificação no rescaldo das Legislativas de 2015 nasce de uma concepção orquestrada pela Direita de que tinha ‘ganho as eleições’. Na realidade, perdeu votos (passando de 50,3% em 2011 para 36,8% em 2015 nos votos expressos) e, deste modo, perdeu o apoio parlamentar que lhe permitiu, durante 4 anos, impor a austeridade (e o empobrecimento) como um caminho redentor para os problemas nacionais.
A Direita em 2015 mostrou não saber fazer contas. Foi incapaz de entender que a persistência de uma ostracização de partidos à Esquerda do espectro partidário (até então considerados como fora do ‘arco do poder’), não conseguiria continuar a condicionar a amplitude das soluções democráticas ditadas pela consulta popular.
A eliminação deste obtuso conceito de ‘arco da governação’, tão diligentemente cultivado pela Direita, foi um ‘golpe mortal’ no status quo político-parlamentar e nos equilíbrios políticos em vigor desde a Aliança Democrática (AD), do final dos anos 70 (1979). Durante toda a legislatura (2015-19) a Direita nunca foi capaz de digerir esta alteração qualitativa da democracia nacional o que, em certa medida, contribui para justificar o estrondoso insucesso eleitoral em 2019.
Aliás, sob o ponto de vista ideológico a Direita nunca quis entender a chamada ‘geringonça’, considerando-a protagonista e executante de uma radical política socialista quando na realidade muitas das medidas tomadas inserem em soluções do ‘tipo keynesiano’ que, como sabemos, estão muito distantes da Esquerda e do Socialismo.
Mais, durante muito tempo o entendimento (limitado às ‘posições conjuntas’) da(s) Esquerda(s) concebidos mais para afastar os efeitos deletérios da Direita na governação do que para impor um programa ideológico com conteúdo programático socialista, foi apresentado publicamente como sendo uma perversão do sentido de voto dos portugueses expresso nas urnas. Em 2019 a Direita teve uma cabal resposta a mais esta acintosa elucubração assente num primário e arcaico conceito anti-socialista e, mais acentuadamente, antimarxista.
Da chamada ‘geringonça’ os portugueses e portuguesas obtiveram ganhos (reversão de direitos, regalias e rendimentos) perante o sepulcral incómodo da Direita, quando não de toscas tentativas de escárnio (as recorrentes rábulas sobre as ‘esquerdas unidas’ de A. Cristas).
A ‘resposta keynesiana’ funcionou (quando se afirma que os portugueses gostaram da ‘geringonça’ está a dizer-se isso) e perante nova auscultação do eleitorado (Legislativas de 2019) criaram-se novas situações que necessariamente impõem outras soluções. Uma das situações bem nítidas foi a derrota, em toda a linha, da Direita que abre – ou não! - novos caminhos à Esquerda.
Por outro lado, a Esquerda não ganhou em toda a linha. O grande beneficiário foi o PS (que reforçou a sua posição eleitoral sem conquistar hegemonias traumatizantes) mas os partidos à sua esquerda (BE e PCP) pagaram caro a ‘colaboração’ na geringonça.
Mais o PCP do que o BE mas na realidade ambos os partidos foram afetados e penalizados (pese embora a euforia bloquista na noite eleitoral). Embora nunca tivesse existido uma ‘Coligação de Esquerda’ ou uma ‘Frente Popular’ (como o PCP se cansou de sublinhar) mais uma vez, e também nesta situação, funcionou a técnica do ‘abraço de urso’ que conhecemos na Europa em relação ao Partido Comunista Italiano (PCI), ao Partido Comunista Francês (PCF) para citar só os casos mais paradigmáticos, que todos conhecemos, e onde coligações acabaram por destroçar os partidos mais pequenos.
Politicamente a Esquerda à esquerda do PS não pode alinhar, às cegas, numa ‘nova geringonça’ (uma ‘geringonça 2.0’) e isso ficou bem nítido nas declarações da noite eleitoral embora tenha sido mais explicitamente vincada pelo PCP do que pelo BE.
A existência de uma futura geringonça não pode ficar pelas ‘políticas keynesianas’, pela gestão das contradições do capitalismo ou pelo combate imediatista às medidas neoliberais adoptadas pelo Governo de Passos Coelho/Paulo Portas. Neste aspecto a Direita tem razão: – a solução encontrada em 2015 esgotou-se.
A Esquerda tem um denominador comum – incontornável - que é o desenvolvimento de políticas socialistas e, sejamos claros, o ‘socialismo’ tem balizas políticas, económicas, sociais e culturais próprias e específicas (embora com múltiplas vias de abordagens), isto é, conceções ideológicas e doutrinárias definidas há muito e apuradas pela ‘praxis’. As dificuldades de aplicação do socialismo (que as há) não podem ser ultrapassadas através de ‘pragmatismos de ocasião’ que mais não conseguem do que beliscar momentaneamente interesses capitalistas, designadamente na criação e distribuição de riqueza, mas deixando tudo na mesma.
Hoje, continuar a alimentar o limbo do chamado ‘Centro-Esquerda’ (como ainda se ouve muito no interior do PS) é iludir as situações políticas, económicas e sociais objetivas e pugnar por soluções que conduzem a lamentáveis equívocos o mais comum deles será a capacidade de um sector da Esquerda continuar a agradar aos mercados na gestão das crises capitalistas. Os partidos de Esquerda não estão condenados a entenderem-se (antes estivessem) e existem razões de natureza política e ideológicas diversas (algumas delas fraturantes) que necessitam de ser ultrapassadas, mas está bem à vista que uma ‘nova geringonça’, nos moldes da anterior, é uma miragem.
O aparentemente ‘natural’, face aos resultados eleitorais, seria uma ‘coligação de Esquerda’, com todas as suas consequências, mas, também, será avisado reconhecer que não existem, de momento, condições objetivas que permitam dar tal passo. Seria necessário ‘partir muita pedra’ e conjugar vontades ainda muito dispersas para não dizer contraditórias (pelo menos em certos sectores).
Resta ao PS governar em minoria buscando apoios de geometria variável (isto é à Direita e à Esquerda) como acabou de anunciar link.
Tal solução não reúne condições para oferecer o mínimo de estabilidade governativa nem disfrutará de grande entusiasmo popular. Ficando só pelo quadro orçamental verificamos que o País poderá estar confrontado com um bloqueio parlamentar assente em diferenças de sentido oposto (isto é a Direita considerar as medidas muito à Esquerda e a Esquerda o contrário) e contraditórias porque nem sempre as opções agradam a gregos e a troianos. Aliás, é, em política, muito polémica a aristotélica conceção de que ‘no meio é que está a virtude’.
Nem sempre as bissectrizes são o rumo vitorioso, muitas vezes elas são uma solução geométrica (daí a ‘geometria variável’), mas a política não é um assunto linear.
Como, também, um outro atributo persistentemente vangloriado as ‘contas certas’ – que foi uma bandeira política e eleitoral – deve ser prioritariamente considerado um produto do financeirismo especulativo e galopante que invadiu a arena da gestão política e ser entendido como ‘boas contas’ (em vez de ‘contas certas’), isto é, ‘contas equilibradas’ entre o acerto contabilístico (que ninguém deprecia) e os motores económico-sociais criativos – p. exº. o investimento público - para satisfazer as exigências do desenvolvimento, que tarda a implantar-se. E para a Esquerda acresce ainda um outro fator – os mecanismos de redistribuição da riqueza que são, também, um ‘modus operandi’ e, claro está, ‘contabile’.
Regressando à questão orçamental a eventualidade de ‘entalanço’ (impasse), quer por fatores políticos internos, quer por influência conjuntural externa, não pode ser liminarmente afastada desta Legislatura, só porque taxativamente consubstancia uma ‘coligação negativa’ (situação politicamente pouco credível), isto é, tal circunstância não pode ser interpretada como ‘um favor à Direita’ ou ‘uma traição à Esquerda’, já que necessariamente vão existir divergências de conceções, princípios e de cálculos originários de posicionamentos políticos diferentes e até opostos entre a esquerda do PS e a sua direita (que ameaça radicalizar-se) e que, na realidade existindo, nem sempre serão conciliáveis (como de antemão a incapacidade em conceber uma ‘geringonça 2.0’ demonstra).
A responsabilidade do ‘não-entendimento’ à Esquerda não pode ser assacada exclusivamente ao PS – existem outros problemas de fundo - mas uma quota-parte não negligenciável nesse ‘insucesso’ advém da assunção da condição de pivot nas soluções que aparece influenciada por uma embriaguez de vitória (esperemos que não seja de Piro).
Entre ter ficado perto e ter alcançado (uma maioria) vai uma subtil diferença muitas vezes fundamental. E o epíteto de ‘maioria reforçada’ só serve para intimidar os parceiros de negociação mas nada acrescenta em termos de estabilidade, nem facilita o ambiente de diálogo.
Uma coisa é certa: as tarefas do XXII Governo Constitucional (ainda não anunciado) serão mais complexas do que as do Governo anterior e o escrutínio será obviamente mais rigoroso e apertado, com capacidade de introduzir novas perturbações na discussão e obtenção de soluções conjugadas e concertadas.
Nada garante que o Governo que vier a sair destas eleições tenha condições de cumprir a Legislatura (como aliás tem sido abundantemente referido nos comentários pós-eleitorais).
Mas é precisamente neste ponto que nos encontramos, no ‘day after’, e daí a evocação de estarmos 'à espera de Godot'…
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