Moçambique Bcaç. 1936 – 2019 – Saudação

Camaradas de Malapísia e Catur

Cabe-me, a pedido do Torres e do Barros, coorganizadores destes encontros, saudar os que vieram, e agradecer às famílias que nos acompanham a estimulante presença nesta reunião da família que somos, pelo afeto, afinidade ou descendência. O Carlos Lopes fá-lo-á também, talvez noutro registo, para os que sobreviveram em Malapísia e no Catur.
É com crescente ansiedade que em cada ano aguardamos a reunião anual da família que fomos durante dois longos e dolorosos anos, a única família que tivemos na guerra que muitos de nós sabíamos perdida e onde ficaram alguns dos que partiram connosco.

Em 24 de setembro de 1964 o comité central da Frelimo proclamou a insurreição geral e abriu a última frente da luta pela libertação das colónias do império português. Nenhum de nós previa então que, três anos depois, a ditadura nos enviaria para Moçambique, na guerra sem solução ou sentido, para a perpetuação do regime, com o sacrifício inútil de quem foi obrigado a combater do lado errado da História.

Hoje é dia de recordarmos com saudade os que lá ficaram e os que fomos perdendo ao longo dos anos, mas é também dia de júbilo dos que aqui nos reunimos no fraterno convívio anual em que esquecemos num banquete lauto as rações de combate e o rancho possível com o estado dos géneros que chegavam nas caixas exotérmicas.

O que faz a idade! Estamos cada vez mais sentimentais, esquecendo as agruras de então, para nos emocionarmos nos abraços que pontuam o encontro de amigos de tantos anos e desejosos de novas reuniões nos anos que ainda vivermos.

Há poucos momentos tão emotivos como o do reencontro dos que vivemos a ansiedade, o medo e a raiva dentro do arame farpado, no mato e nas picadas lamacentas do Niassa, no Bcaç. 1936. Abraçamos os vivos e recordamos magoadamente os mortos, os que lá ficaram e os que foram partindo nos últimos cinquenta anos.

Como camaradas falecidos, é nosso dever recordar o ten.-coronel Vilela e o maj. Beirão, que há muito nos deixaram, por se terem comportado, nos lugares de comando, com humanismo, dignidade e ética numa guerra de que também discordavam. Estou em condições de o garantir e, por isso, eles eram e serão sempre dois de nós.

Se hoje estamos aqui, sem termos de nos envergonhar de atos indignos, é também a eles que o devemos. Nunca consentiram a tortura de soldados inimigos capturados, embora a Pide disso se encarregasse depois.

Eles deviam saber do massacre de Massangulo, em outubro de 1967, dos fuzilamentos e crueldade contra oito homens da aldeia. O bispo de Vila Cabral, Eurico Dias Nogueira, soube disso, e só o revelou depois de usar a mitra e o báculo em Vila Cabral e Sá da Bandeira, quando dava a beijar o anelão na diocese de Braga com o cónego Melo à vista.

Os vinte e seis meses e seis dias de degredo e cativeiro, dentro e fora do arame farpado, partilhando medos e ansiedade, forjaram afetos que o sofrimento comum aprofundou.

Está ainda, dentro de nós, a guerra, o medo, a revolta e a amarga desilusão de um inútil sofrimento, mas é mais forte a afetividade que marca os encontros anuais, e a alegria com que celebramos o dia de hoje e fruímos sem remorsos o gosto intenso que aqui nos traz, o sortilégio de afetos imperecíveis, dos laços que o tempo reforçou.

Interrogo-me se escassas horas de convívio valem o longo tempo e pesado custo de cada vinda, com as mazelas que já nos afligem, mas quem sentiu o medo e viveu a revolta de três a quatro anos, ou mais, sofridos na juventude, sente que compensa encontrar os que vieram e abraçar os que durante vinte e seis meses foram a nossa única família, os que o acaso reuniu no mesmo navio, o Vera Cruz, com destino a Catur e Malapísia.

Este é o 27.º encontro, cumprido sem falhas, depois de 23 anos de nojo, o tempo de luto das memórias sofridas e da contenção da raiva. E são tão gratificantes estes encontros!

Termino com votos de que o ano que vier nos encontre onde o Carlos Lopes, o Barros e o Torres nos indicarem, de que os que aqui viemos lá nos achemos com os que hoje não puderam vir, e de que nenhum falte por ter caído numa emboscada da vida.

É com um abraço, do tamanho do tempo que a nossa amizade já leva, que envolvo todos os que vieram e as suas famílias.

Feliz regresso a casa. Até sempre, camaradas!

Restaurante Quinta do Casalinho Farto, Fátima, 20 de outubro de 2019
CBE
Aquartelamento de Catur

                                                                             ***
Fonte – [Fuzilamento em Massangulo – outubro de 1966. A tropa portuguesa cercou a aldeia, capturou oito homens e fuzilou-os à frente da população, acusados de pertencerem à Frelimo. A seguir regaram-nos com gasolina e chegaram-lhes o fogo. Depois, não permitiam que ninguém se aproximasse para que as feras pudessem comer os restos. § Por incrível que pareça, um deles sobreviveu às balas e ao fogo, apesar de bastante queimado. O padre avisou-me logo: «Sr. Bispo, vamos ter problemas se descobrem isto». Falei com o capitão (…)] in «Companhia de Caçadores 2418 – Na guerra em Moçambique», 1968/70, Fernando Carvalho.
(Por constrangimento, não identifico a Companhia assassina, mas vem no livro referido, em nota de rodapé, na página 48).

Comentários

josé neves disse…
Coincidência, eu estive no mesmo local de "Quinta do Casalinho Farto" no dia 12 de Outubro de 2019 pelo mesmo motivo e com o mesmo objectivo de comemorar com os sobreviventes da minha Unidade Militar em Angola, 1961-1963.
Gostámos e já ficou acertado que vai ser lá novamente em 2020.

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