A posse do Governador Civil da Guarda (Crónica da memória)
Em 19 de abril de 1960 tomou posse, com pompa e circunstância, o médico Alfredo dos Santos Júnior, político de fortes convicções fascistas e inexcedível dedicação a Salazar.
Em 1933 foi eleito presidente do CADC, incubadora fascista de destacados quadros do regime, inclusive do ditador vitalício. Foi a sua única eleição, depois terminou sempre nomeado ou incluído nas listas únicas da União Nacional.
A coreografia da tomada de posse de Governador Civil foi adequada ao largo cadastro do ex-presidente do CADC. Presidente da Câmara de Gouveia, fora presidente da União Nacional no distrito da Guarda, deputado e dirigente da Mocidade Portuguesa.
Horas antes da cerimónia, a Polícia de Viação e Trânsito começara a parar o trânsito do Porto da Carne em direção à Guarda. Presidentes das Câmaras e forças vivas de todos os concelhos do distrito, incluindo os párocos, estavam já na cidade, para lhe prestarem vassalagem, ou integravam a comitiva que o precedia, para o aplaudirem à chegada, escoltados por carros da polícia e de bombeiros. As fardas ficam sempre bem nas cerimónias, pias ou profanas, dão colorido à festa e incham o peito aos homenageados.
A marcha lenta ajudou a engrossar a caravana automóvel. Nem as feiras de S. Francisco e de S. João levavam à cidade tantos automóveis e, com eles, presos no trânsito, carros de matrícula francesa, uma camionete de repolhos, outra do Reduto, com animais vivos, e furgonetas que abasteciam o mercado e as mercearias.
Essa terça-feira foi muito mais movimentada do que os dias de praça, quartas e sábados, e diferente a gente que inundava a cidade. As vendedeiras de xaile e lenço deram lugar a senhores engravatados, os aldeões às forças vivas das vilas e os jovens, que habitavam a cidade, aos funcionários públicos, padres e oficiais do exército que eram figurantes na cerimónia de investidura.
Havia um mar de gente junto ao edifício do Governo Civil, repleto de curiosos o jardim em frente até ao Café Mondego. Quando a Excelência saiu do carro, depois de o polícia que o conduzia lhe ter ido abrir a porta, uns por obrigação, outros por devoção, gritaram vivas ao Sr. Governador, e uma revoada de palmas marcou o júbilo da chegada do chefe do distrito, enquanto a banda de música, ataviada a rigor, atacava com instrumentos de sopro e percussão uma música festiva qualquer.
A tomada de posse do Dr. Santos Júnior foi mais animada do que a do bispo Policarpo da Costa Vaz, em 9 de junho desse ano, a quem a morte do Sr. D. Domingos abriu vaga quando expulso de Macau por ter mandado destruir fotos de Mao Tsé-Tung nas escolas e colégios, o que levou os chineses a humilhar o Governo português, obrigado a reparar os estragos.
O passado do Governador era negro, e pior seria o futuro, de que falarei mais à frente.
Em 1956 ou 57, alunos do liceu da Guarda, fomos a Gouveia e Mangualde a representar uma peça de teatro, com apoio da Mocidade Portuguesa, que custeou a deslocação. Em Gouveia estavam previstos o jantar e as dormidas no Hotel, custeados pelo município. À chegada, o Luciano Calheiros, comandante de Bandeira da M.P., foi com alguns atores apresentar cumprimentos ao Sr. Presidente da Câmara, que nos julgava fardados. Dececionado com as capas e batinas disse que nos desconhecia com aquele traje, e a refeição e dormidas foram canceladas. O Calheiros quis contar uma história diferente, e foi logo desautorizado pelos que o acompanharam, e contaram o sucedido. Na manhã seguinte faltou o pequeno almoço antes da ida para Mangualde, onde almoçaríamos. Valeu, a alguns de nós, o padre Isidro, que cultivava a vinha do Senhor e outras de boas castas do Dão. Brindou-nos com vinho, queijo, presunto e pão. Era um pároco simpático que alguém nos sugeriu para um pequeno almoço à borla, sem o matinal café com leite.
Jantámos e dormimos numa pensão manhosa que a idade e os hábitos não estranhariam, não fora o facto de dormirmos 3 em cada cama, salvo se eram avantajados e só cabiam dois. Recordo-me de dormir na beira da cama e ter de me levantar sempre que algum mudava de posição. A peça e as cantorias encontraram o Cine-Teatro Gouveense repleto e fomos muito aplaudidos. Só os que foram com o Luciano conheceram o presidente da Câmara que viria a ser Governador Civil da Guarda e muito mais, e ainda pior.
Esteve no cargo pouco mais de um ano. Notou-se-lhe a subserviência ao clero, a quem dava sempre o lado direito. Gostava de exibir o poder clerical acima do político. O Café Monteneve era o seu local de convívio com a nata da cidade, isto é, a escória da ditadura, incluindo o chefe da recente delegação da Pide, o presidente da UN no distrito e diretor da EMPG, Armando Saraiva de Melo, e outros biltres.
De 4 de maio de 1961 a 19 de agosto de 1968 foi ministro do Interior, de onde saiu para uma das sinecuras douradas que o ditador reservava aos diletos, presidente do Conselho de Administração de uma grande Companhia cujo nome já não recordo.
O ministro responsável de inumeráveis crimes, onde avulta o assassínio do escultor Dias Coelho numa rua de Lisboa, logo no primeiro ano de ministro, nunca foi julgado. Ficou impune das torturas, prisões arbitrárias, violações de correspondência, assassinatos, e de tudo o que o regime de terror foi capaz, sob a sua direta responsabilidade.
Com generosa reforma, morreu aos 82 anos, confortado com todos os sacramentos, e 3 graus da mesma venera, Oficial, Comendador e Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.
Nos 16 anos depois do 25 de Abril, nunca respondeu pela brutalidade com que em 13 de fevereiro de 1965 foi selvaticamente torturado e fuzilado o general Humberto Delgado, pelo sádico assassino Casimiro Monteiro. Salazar atribuiu o crime aos comunistas, numa das raras comunicações televisivas, e a censura evitou a divulgação da verdade.
Santos Júnior podia ter servido num campo de concentração nazi. A sua formação era adequada ao regime totalitário, amoral e sanguinário que serviu com zelo e inexcedível dedicação ao ditador. Dizia que só tinha um partido, Salazar ordenava e ele cumpria. E ninguém lhe partiu os ossos, como Casimiro Monteiro ao gen. Delgado, nem os dentes, como os pides a numerosos presos.
Santos Júnior foi um expoente da ditadura e metáfora da longa época de opróbrio.
Em 1933 foi eleito presidente do CADC, incubadora fascista de destacados quadros do regime, inclusive do ditador vitalício. Foi a sua única eleição, depois terminou sempre nomeado ou incluído nas listas únicas da União Nacional.
A coreografia da tomada de posse de Governador Civil foi adequada ao largo cadastro do ex-presidente do CADC. Presidente da Câmara de Gouveia, fora presidente da União Nacional no distrito da Guarda, deputado e dirigente da Mocidade Portuguesa.
Horas antes da cerimónia, a Polícia de Viação e Trânsito começara a parar o trânsito do Porto da Carne em direção à Guarda. Presidentes das Câmaras e forças vivas de todos os concelhos do distrito, incluindo os párocos, estavam já na cidade, para lhe prestarem vassalagem, ou integravam a comitiva que o precedia, para o aplaudirem à chegada, escoltados por carros da polícia e de bombeiros. As fardas ficam sempre bem nas cerimónias, pias ou profanas, dão colorido à festa e incham o peito aos homenageados.
A marcha lenta ajudou a engrossar a caravana automóvel. Nem as feiras de S. Francisco e de S. João levavam à cidade tantos automóveis e, com eles, presos no trânsito, carros de matrícula francesa, uma camionete de repolhos, outra do Reduto, com animais vivos, e furgonetas que abasteciam o mercado e as mercearias.
Essa terça-feira foi muito mais movimentada do que os dias de praça, quartas e sábados, e diferente a gente que inundava a cidade. As vendedeiras de xaile e lenço deram lugar a senhores engravatados, os aldeões às forças vivas das vilas e os jovens, que habitavam a cidade, aos funcionários públicos, padres e oficiais do exército que eram figurantes na cerimónia de investidura.
Havia um mar de gente junto ao edifício do Governo Civil, repleto de curiosos o jardim em frente até ao Café Mondego. Quando a Excelência saiu do carro, depois de o polícia que o conduzia lhe ter ido abrir a porta, uns por obrigação, outros por devoção, gritaram vivas ao Sr. Governador, e uma revoada de palmas marcou o júbilo da chegada do chefe do distrito, enquanto a banda de música, ataviada a rigor, atacava com instrumentos de sopro e percussão uma música festiva qualquer.
A tomada de posse do Dr. Santos Júnior foi mais animada do que a do bispo Policarpo da Costa Vaz, em 9 de junho desse ano, a quem a morte do Sr. D. Domingos abriu vaga quando expulso de Macau por ter mandado destruir fotos de Mao Tsé-Tung nas escolas e colégios, o que levou os chineses a humilhar o Governo português, obrigado a reparar os estragos.
O passado do Governador era negro, e pior seria o futuro, de que falarei mais à frente.
Em 1956 ou 57, alunos do liceu da Guarda, fomos a Gouveia e Mangualde a representar uma peça de teatro, com apoio da Mocidade Portuguesa, que custeou a deslocação. Em Gouveia estavam previstos o jantar e as dormidas no Hotel, custeados pelo município. À chegada, o Luciano Calheiros, comandante de Bandeira da M.P., foi com alguns atores apresentar cumprimentos ao Sr. Presidente da Câmara, que nos julgava fardados. Dececionado com as capas e batinas disse que nos desconhecia com aquele traje, e a refeição e dormidas foram canceladas. O Calheiros quis contar uma história diferente, e foi logo desautorizado pelos que o acompanharam, e contaram o sucedido. Na manhã seguinte faltou o pequeno almoço antes da ida para Mangualde, onde almoçaríamos. Valeu, a alguns de nós, o padre Isidro, que cultivava a vinha do Senhor e outras de boas castas do Dão. Brindou-nos com vinho, queijo, presunto e pão. Era um pároco simpático que alguém nos sugeriu para um pequeno almoço à borla, sem o matinal café com leite.
Jantámos e dormimos numa pensão manhosa que a idade e os hábitos não estranhariam, não fora o facto de dormirmos 3 em cada cama, salvo se eram avantajados e só cabiam dois. Recordo-me de dormir na beira da cama e ter de me levantar sempre que algum mudava de posição. A peça e as cantorias encontraram o Cine-Teatro Gouveense repleto e fomos muito aplaudidos. Só os que foram com o Luciano conheceram o presidente da Câmara que viria a ser Governador Civil da Guarda e muito mais, e ainda pior.
Esteve no cargo pouco mais de um ano. Notou-se-lhe a subserviência ao clero, a quem dava sempre o lado direito. Gostava de exibir o poder clerical acima do político. O Café Monteneve era o seu local de convívio com a nata da cidade, isto é, a escória da ditadura, incluindo o chefe da recente delegação da Pide, o presidente da UN no distrito e diretor da EMPG, Armando Saraiva de Melo, e outros biltres.
De 4 de maio de 1961 a 19 de agosto de 1968 foi ministro do Interior, de onde saiu para uma das sinecuras douradas que o ditador reservava aos diletos, presidente do Conselho de Administração de uma grande Companhia cujo nome já não recordo.
O ministro responsável de inumeráveis crimes, onde avulta o assassínio do escultor Dias Coelho numa rua de Lisboa, logo no primeiro ano de ministro, nunca foi julgado. Ficou impune das torturas, prisões arbitrárias, violações de correspondência, assassinatos, e de tudo o que o regime de terror foi capaz, sob a sua direta responsabilidade.
Com generosa reforma, morreu aos 82 anos, confortado com todos os sacramentos, e 3 graus da mesma venera, Oficial, Comendador e Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.
Nos 16 anos depois do 25 de Abril, nunca respondeu pela brutalidade com que em 13 de fevereiro de 1965 foi selvaticamente torturado e fuzilado o general Humberto Delgado, pelo sádico assassino Casimiro Monteiro. Salazar atribuiu o crime aos comunistas, numa das raras comunicações televisivas, e a censura evitou a divulgação da verdade.
Santos Júnior podia ter servido num campo de concentração nazi. A sua formação era adequada ao regime totalitário, amoral e sanguinário que serviu com zelo e inexcedível dedicação ao ditador. Dizia que só tinha um partido, Salazar ordenava e ele cumpria. E ninguém lhe partiu os ossos, como Casimiro Monteiro ao gen. Delgado, nem os dentes, como os pides a numerosos presos.
Santos Júnior foi um expoente da ditadura e metáfora da longa época de opróbrio.
Comentários
- 1961, Cândido Martins Capilé, operário corticeiro, é assassinado a tiro pela GNR durante uma manifestação em Almada; José Dias Coelho, escultor e militante do PCP, é assassinado à queima-roupa numa rua de Lisboa;
- 1962, António Graciano Adângio e Francisco Madeira, mineiros em Aljustrel, são assassinados a tiro pela GNR; Estêvão Giro, operário de Alcochete, é assassinado a tiro pela PSP durante a manifestação do 1º de Maio em Lisboa;
- 1963, Agostinho Fineza, operário tipógrafo do Funchal, é assassinado pela PSP, sob a indicação da PIDE, durante uma manifestação em Lisboa;
- 1964, Francisco Brito, desertor da guerra colonial, é assassinado em Loulé pela GNR; David Almeida Reis, trabalhador, é assassinado por agentes da PIDE durante uma manifestação em Lisboa;
- 1965, general Humberto Delgado e a sua secretária Arajaryr Campos são assassinados a tiro em Vila Nueva del Fresno (Espanha), os assassinos são o inspector da PIDE Rosa Casaco e o subinspector Agostinho Tienza e o agente Casimiro Monteiro;
- 1967, Manuel Agostinho Góis, trabalhador agrícola de Cuba, morre vítima de tortura na PIDE".