«TODOS DIFERENTES, TODOS IGUAIS»

Por Onofre Varela

Fazendo uma “inspecção” (ou uma espécie de “romagem de saudade”) ao que já escrevi neste espaço do nosso jornal O Cidadão, deparei-me com um texto publicado em Maio (há quase um ano) sobre “a castração da inteligência e a proibição de ler livros” referindo um procedimento anti-democrático, anti-cultural… e anti-tudo quanto seja decente, perpetrado pela seita religiosa Opus Dei, engajada no Vaticano, que se imagina dona de um pensamento de pureza imaculada e se arroga o direito de proibir a leitura de livros aos seus membros.

Perante esta visita a um texto “quase arqueológico”, lembrei-me de me armar em antropólogo (ou em algo aparentado) para dizer que a espécie humana é universal e convive salutarmente em todos os pontos do globo (exceptuando, evidentemente, aquela gente que não sabe fazer nada mais que não seja guerra aos seus vizinhos, como Putin faz na Ucrânia e Netanyahu na Palestina, ambos com a bênção de Trump).

Sabe-se que não há “Raças Humanas”. O “Homo Sapiens sapiens” é um só em todo o mundo. As diferenças entre nós são de ordem cultural e regional, as quais são entendidas e aceites por cada um quando o raciocínio obedece a um estádio civilizacional que nos nivela pela igualdade, no respeito pela sensibilidade e diferença do outro (Todos Diferentes, Todos Iguais).
Esta igualdade é defendida, também, pela religião Cristã em duas partes da Bíblia (Levítico, 19:18 [Velho Testamento] e Mateus, 22:37-39 [Novo Testamento]) com a frase “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Esta conjugação do verbo Amar significa “agir para o bem da outra pessoa sem esperar nada em troca. Tratar o outro com o respeito devido à sua dignidade enquanto pessoa”.
Não tenho dúvida de que a prática deste mandamento religioso sublinha a perfeição comportamental. Na verdade, se todos nós agíssemos assim… não existiam conflitos nem guerras… e no limite as esquadras de polícia e os tribunais encerravam por falta de clientela.

Mas nós somos muito mais do que receptores (e criadores) de conceitos comportamentais e religiosos… também somos (principalmente) animais. E a condição de animal, a que não podemos fugir, nivela-nos por todos os outros animais nossos irmãos de reino, dos quais nos destacamos só porque possuímos um cérebro “enriquecido”, o que nos permite criar Cultura.


“Adão era canhoto”. Lápis de cor e grafite. Desenho de Onofre Varela.
 

Para quem é religioso, as leis gerais da Natureza de que resultaram os processos químicos e físicos responsáveis pelo nascimento do Cosmos, pelo eclodir da vida e pelo “enriquecimento” do nosso cérebro, de nada valem se não lhe acrescentarem o mito do “sopro de Deus”!…  As religiões induziram os crentes a verem “a mão divina” nas leis gerais da Natureza, levando-os a acreditarem numa vontade invisível na origem de todas as coisas… sem se explicar, de modo a que se compreenda, a natureza dessa vontade… mesmo sabendo-se que foi o Homem quem criou (o conceito de) Deus… e não o contrário!

Será que, por isso, se pode afirmar que “crer em Deus é sinónimo de ignorância”?…

Porque é que um licenciado – médico, por exemplo (existe a Associação dos Médicos Católicos) – tem, pelo conceito de Deus, a mesma adoração de um servente de obras analfabeto? Será que o licenciado não aprendeu nada… ou o analfabeto sabe muito?!

É erro dizer que a crença em Deus pertence aos ignorantes. O saber e a crença podem coabitar (e coabitam) pacificamente na mesma mente. A religiosidade é um atributo humano e a ideia de Deus está alojada no cérebro de todos nós, sejamos crentes ou descrentes. É um elemento racional e cultural só existente num cérebro inteligente. Nós criamos a ideia abstracta de Deus porque sentimos precisar dela… necessitamos de um ente a quem adorar… e contra isto não se pode, nem deve, lutar. Seria irracional fazê-lo, uma vez que criamos Deus para isso mesmo…

O berço que tivemos, o meio em que crescemos e fomos educados, mais a sensibilidade de cada um, o percurso que fazemos na vida e o entendimento que temos das coisas que nos rodeiam, ditará o interesse e o valor que cada indivíduo dá (ou não dá) à ideia do divino… e não devemos enaltecer ou minimizar o outro, só porque ele crê, ou não crê, numa divindade!

O culto de Deus está presente nas famílias desde que se nasce (pelo baptismo na pia da igreja da paróquia), na celebração religiosa da Comunhão (como referente da passagem da meninice para a juventude), no casamento frente ao altar e, mais tarde, no baptismo dos filhos… repetindo a cultura herdada como pescadinha-de-rabo-na-boca, até ao enterramento depois de finado, com funeral presidido por um sacerdote que encomenda a alma do defunto ao “Altíssimo”.

Toda a vida do temeroso crente é votada à religiosidade, o que tem muito peso no entendimento que ele faz da palavra Deus. Não há quem possa fugir à ética social e religiosa presente na construção das suas origens… e essa impossibilidade de fuga tem o seu preço.

Para além desta verdade antropológica e social que nos formata, há “a outra verdade”: o comércio religioso nas lojas e espécie de enfermaria ou consultório de psicologia em que as igrejas se transformaram, prestando assistência à alma a qualquer hora do dia. Igrejas, assembleias de seitas, capelas e alminhas de esquina, estão tão disseminadas pelo país como estão as caixas Multibanco, aparentando o deus-das-crenças ao deus-do-dinheiro. Somos escravos dos dois.

Qualquer produto religioso que se mostre de interesse geral (ou mesmo sem se mostrar; a fé basta) passa a ser comercializado, a alimentar indústrias, a ser massivamente publicitado e consumido tal como a Coca-Cola, os hambúrgueres e as telenovelas, mas com a diferença de os produtos religiosos serem rotulados de “sagrados”, o que lhes dá uma carga de “respeitabilidade” cimentada com medos medievais… o que a Coca-Cola não tem.

O “produto-Deus” está colado a nós como cromo de caderneta. Tem a mais valia de nos acompanhar desde o Paleolítico, com reforço nas Idades do Ferro e do Bronze, acrescentado pelo medo do castigo divino induzido na Idade Média e embelezado com a Arte da Renascença. Na nossa civilização a história de Deus “já vem de longe” (como dizia a publicidade ao Brandy Constantino da minha juventude), desde a Antiguidade Clássica importadora dos enigmáticos deuses da Mesopotâmia, acompanhando-nos nos momentos mais emblemáticos das nossas vidas, o que, por si só, exerce muita influência nos nossos modos de ser e de estar.

Mas, em termos sociais, há muito mais para além disso. A ideia de Deus também serve interesses políticos e económicos, o que tem demasiada importância para os mandantes do mundo que usam o conceito de Deus e a religiosidade dos povos como ferramenta coerciva e de exploração da mente de quem crê… e que não consegue interrogar a sua crença!

Não foi por acaso que André Ventura mostrou, em entrevista televisiva em tempo de afirmação do seu partido como “salvador da populaça”, um terço que afirmou trazer sempre no bolso, e que ao fim das tardes vai assistir a uma missa! Com tal demonstração pretendeu afirmar-se católico para cativar religiosos para o seu partido… e se Jesus soubesse… provavelmente envergonhar-se-ia com tal referência… “subiam-lhe os azeites à moleirinha” e espantava aquela amostra de político ao tabefe e ao pontapé, como nos Evangelhos se diz que fez aos vendilhões no templo!

Sendo assim… já percebe por que é que a ideia de Deus também habita cabeças com raciocínio superior ao de um servente de obras analfabeto?!…

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