Natal - Votos de Boas-Festas para os leitores
Natal - Votos de Boas-Festas para os leitores
Em meados
do século XX o Natal era oportunidade para reunir as famílias. Os ausentes
voltavam todos os anos à aldeia de origem, nas carruagens de 3.ª classe de
comboios apinhados de pessoas e cabazes, com odores a que se resignavam as
pituitárias de então.
Através do
vidro partido, ou da janela avariada, o ar gélido entrava nas carruagens e nos
corpos. Os passageiros partilhavam a vida e as merendas nas penosas e longas
viagens de pára-arranca. Os Senhores Passageiros precisavam de embarcar, ou de
desembarcar, e a máquina a vapor, de abastecer de carvão a fornalha e de água a
caldeira.
Às vezes o
comboio parava nas subidas para que a caldeira ganhasse pressão e pudesse
rebocar o peso acrescido que deslocava. Entre Lisboa e a Guarda era normal um
atraso de duas ou três horas, pela Beira Alta, e mais ainda pela Beira Baixa.
Nas
estações e apeadeiros esperavam bestas e pessoas, impacientes e enregeladas. À
chegada do comboio havia abraços, ternos e demorados, e lágrimas de alegria. Do
comboio acenavam mãos e ouviam-se votos de Feliz Natal quando o apito anunciava
o retomar da marcha. Aos que se apeavam, só o caminho lamacento os separava,
então, da casa da aldeia onde aguardavam os parentes que ficaram em ansiosa
espera.
Quando
eram pequenas as casas e numerosas as famílias, sobrava sempre lugar para os
que chegavam. A ceia de Natal era o momento mágico que matava fomes ancestrais
e a saudade das ausências.
Na lareira
fumegavam panelas cheias, cujos odores, fundidos com os que vinham da sala,
traziam à memória os sabores da infância.
A candeia
de azeite iluminava os trajetos domésticos enquanto o candeeiro a petróleo
projetava as sombras dos familiares reunidos em conciliábulo.
Estranhava-se
o milagre que permitira tantas postas de bacalhau, já que os repolhos e as
batatas os davam a horta, e os frutos eram secos no tempo devido. Rabanadas,
arroz doce, sonhos, filhós e toda aquela variedade de guloseimas eram fruto dos
ingredientes próprios e de segredos herdados, a que o lume brando da lareira
requintava o sabor.
Não
deixava de ser estranho que tanto desse, quem tão pouco tinha, e negasse,
avaro, quem muito podia. Eram esses os tempos, ainda são assim as pessoas que
restam.
Ceavam
primeiro as crianças, por questão de espaço e de impaciência; passavam, depois,
à sopa, os mais velhos, antes de se saciarem no bacalhau, repolho e batatas,
regados com azeite. Só depois de esgotado o vinho no garrafão e de se ver o
fundo à panela se entrava nas sobremesas, nas aguardentes e na jeropiga.
As
crianças impacientavam-se com a demora do menino Jesus que raramente trazia os
presentes que ansiavam, mas conformavam-se com os que lhes coubessem. Os
adultos sugeriam-lhes a cama enquanto os sapatos rodeavam a lareira à distância
conveniente do lume que ainda crepitava. O sono acabava por vencê-las,
adormecendo primeiro as mais pequenas, que as mães e a avó iam depositando em
camas improvisadas.
No pouco
espaço disponível havia ainda lugar para o presépio, uma ingénua encenação do
mito cristão, que o pinheiro, oriundo de outras culturas, havia de substituir
num prenúncio da globalização, para acabar feito de plástico, coberto de bolas
coloridas.
De manhã,
à medida que acordavam, os miúdos corriam para a chaminé, ansiosos por
encontrar as prendas e exultavam com os presentes.
O Menino
Jesus que, então, descia pelas chaminés, foi trocado pelo Pai Natal, a viajar
de trenó, puxado por renas, em terras onde só a neve fazia jus à nova fábula
que roubou o encanto dos musgos, da serradura, do algodão em rama e dos animais
que rodeavam o menino de barro, deitado em berço de palha.
Nos
sapatinhos, onde então cabiam os chocolates e os carrinhos de corda, que faziam
as delícias das crianças, o terço para a tia beata ou a onça de tabaco para o
avô, não cabem hoje os jogos de computador, esperados sem ansiedade, nem os
presentes embrulhados em papel reluzente.
Alguns
pais ainda voltam aos sítios de origem para mostrar, aos avós, os netos, com o
mesmo ar de enfado com que os levam ao Jardim Zoológico, a verem a girafa e o
elefante, ou os metem nos Centros Comerciais. Mas o mais frequente é tirar os
velhos da toca e pô-los a fazer o percurso inverso, com 50% de desconto no
preço do bilhete, num exílio que começa na véspera da consoada e termina, no
início do Ano Novo, com a devolução ao habitat.
Mudaram-se
os tempos. Do Natal que havia, resta a recordação das crianças que foram.
Ponte Europa (2. Edição) – pág. 19/21

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