Praia da Caparica (Crónica)

A vida é difícil em Lisboa na década de sessenta do século que foi. Sofrem-se os dias no inferno do trânsito, na bicha para o bitoque e na desenfreada tentativa de despachar as crianças a tempo de chegar ao emprego antes do patrão. Acumulam-se tensões, teme-se a doença, remói-se a angústia das prestações por pagar, da televisão, do frigorífico e do carro e vive-se o medo da guerra que nunca mais acaba.

À segunda já se deseja a tarde de sábado e, então, teme-se o princípio da semana que virá. No inverno maldiz-se a chuva, no verão impreca-se o calor.

No Verão o destino provável da fuga à canícula que apoquenta a grande urbe é o mar. Aos fins de semana a Caparica é Lisboa em fato de banho que se vai reduzindo a caminho da Fonte da Telha ou dele se liberta, de todo, já no Meco.
Procura-se à chegada o espaço que se reservava com a manta rodeada de toalhas a marcar o terreno da tribo e a confiscar o espaço do bando familiar. Guardam-se vitualhas à sombra de um guarda-sol que evita o ranço aos fritos que jazem nas marmitas e a ebulição do tinto que aguarda no garrafão.

Os garotos divertem-se a jogar à bola, chapinham na água ou modelam com areia molhada sonhos esculpidos no intervalo dos tabefes, conquistados por cortarem conversas, reclamarem gelados ou pedirem um chichi.
Ao longe, açapado nas dunas, há quem expila líquidos ingeridos em excesso, quem alivie sólidos urgentes que as salmonelas fluidificam, enquanto outros, aos pares, aliviam a roupa e os preconceitos, compram entusiasmos e pecados, vivem sonhos e fabricam pesadelos ou, tão só, franqueiam a janela da oportunidade acidental enquanto esquecem a guerra que os espera ou os traumas que trouxeram.

Há sempre jovens que têm como destino um corpo para viajar e um par para amar. Saboreiam a boca, os olhos e o mais que aparece, em busca da anatomia do prazer. Detêm-se nas orelhas, esquecem a língua no calor da boca alheia. Partem dali em sôfrega correria de beijos húmidos e ásperos afagos, navegando um oceano de pele que ora eriça ora se acalma, caminhos sinuosos à espera do semeador que a cada gesto recebe o troco, em cada investida colhe frutos. Percorrem-se devagar, das colinas até ao mar, avançam e recuam, sem cuidar se os caminhos se repetem ou vão dar a sítios já navegados, se as ondas que sulcam são as mesmas onde já mergulharam. Partem lentamente sem querer chegar, chegam depressa e querem voltar. E há o cheiro, fragrância discreta que inebria, o sabor que prende e vicia e o sorriso que desconcerta. Nem se dão conta de que a claridade é a roupagem a que se reduzem e o vento a sua única protecção. Nem sequer ouvem aquela voz que sussurra, que pouca vergonha, a fingir indignação onde transparece alguma inveja.

Por toda a parte assam corpos com quilos a mais e protector solar a menos. Aqui e ali derruba-se a ditadura que envelhece e cochicha-se sobre as mortes da guerra colonial. Exulta-se com os últimos escândalos da política e os primeiros de certas figuras públicas. Os ódios clubistas e as rivalidades de bairro sobem de tom e avivam, na face, a cor das queimaduras solares.

Os velhos agarram os raios de sol com que apaziguam o reumatismo e as moléstias da coluna, sorvem na concha da mão a água salgada com que anseiam aliviar a asma e o catarro e coçam na areia a micose que todos os estios recidiva.

Os novos fruem a vida serenamente – belos genomas com todos os genes possíveis ao sol, quase sempre bem distribuídos, agradáveis à vista e certamente ao tacto, quiçá ao paladar, rolando aos pares na areia das dunas em sôfregos beijos com sabor a sal e desejos iodados à espera.

A água acolhe os corpos abrasados, liberta-os das areias, percorre-lhes a geografia, afeiçoa-se à geometria que varia ao sabor dos movimentos. Quando os últimos raios de sol espreitam e acariciam os corpos lânguidos vêm abendiçoá-los depois das últimas abluções rituais que a liturgia dos dias cálidos impõe nos fins de tarde.

Foi há tantos anos. Podia ser agora.

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