(Mais) um olhar [focalizado] para a ‘crise cultural’ (II) …

O País acordou - com evidente sobressalto - para uma latente ‘questão cultural’ aparentemente adormecida pelos inóspitos e duros anos de austeridade. Repentinamente o ‘meio cultural’ despertou à volta de cortes orçamentais e de espúrios mecanismos de seleção, que infestaram os ditos ‘apoios às artes’ link. Instalou-se aquilo a que podemos denominar como ‘uma crise cultural’.
As primeiras impressões acerca da dimensão deste despautério são absolutamente devastadoras, sacodem o País de alto a baixo e motivaram um primeiro post sobre o assunto no dia 15.04.2018.
 
É ainda difícil compreender, hoje, os critérios usados, mesmo após o emendar de mão protagonizado pelo primeiro-ministro. Quando se choca com o emprego de novas terminologias, como por exemplo, ‘cruzamentos disciplinares’, cujo âmbito parece demasiado vazio ou sintético, até ‘acultural’ e mais se assemelha a uma bissetriz de performances do tipo daquelas que, nos velhos tempos dos hippies, eram designadas por ‘happenings’, compreendemos que o problema é maior e atinge a clarividência e o entendimento de que a promoção da Cultura não está a ser encarada como um serviço público da maior relevância.
O Ministério da Cultura não é – e muito menos o poderá ser num governo de Esquerda – um mero ‘entreposto de distribuição’ de subsídios e outras prebendas, desbaratando uma 'visão cultural' nacional e, por fim, tentar abdicar de fomentar uma 'política cultural', cujo âmbito é a universalidade.
 
Restringindo - por questões de espaço - a análise ao sector artístico teatral e começando pelo Norte verificamos existirem situações muito dificilmente explicáveis - o TEP, a Seiva Trupe, o Festival Internacional de Marionetes e o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, entre outros - foram preliminarmente excluídos desse ‘quadro de apoios’, sem que seja inteligível qualquer estratégia cultural.
 
Passando pelo Centro do País a voragem de exclusão atingiu, p. exº., em Coimbra, a Escola da Noite e o Teatrão e na Covilhã o Teatro das Beiras, quando em simultâneo se rubricam – com pompa e circunstância - acordos sobre ‘descentralização’.
 
Caminhando para paragens mais meridionais, em Setúbal, o TAS e o Teatro Estúdio Fontenova são as mais visíveis vítimas (existirão outras) desde capcioso processo de seleção.
 
Outros exemplos se sucederiam mas vamos fixar-nos sobre o ‘Centro Cultural’, agora denominado de ‘Centro Dramático’ (CENDREV), que fixou residência (artística) e desenvolve a sua atividade cultural a partir de Évora (mas não só para Évora).
 
Deste exemplo singular, poderá retirar-se vários ensinamentos e compreender a olímpica displicência dos ‘decisores culturais’ a começar pelo Ministro da Cultura e a acabar no mais indiferenciado funcionário ou colaborador da DGArtes.
 
O Centro Cultural de Évora foi concebido, no PREC (1975/76), no seio de uma comissão encarregada de elaborar uma Lei de Teatro (conforme constava no Programa do MFA) que se reunia semanalmente no Palácio Foz.
 
Mário Barradas integrava de pleno direito, por qualificação e por mérito artístico essa comissão que dedicou largos meses a inventariar a produção teatral e a redigir um texto que enquadrasse a atividade teatral futura num quadro de liberdade e de desenvolvimento das artes cénicas e da dramaturgia nacional, num novo País.
 
A dada altura discutia-se a reconstrução e reequipamento do Teatro Nacional que, anos antes (1964), tinha sido vítima de um devastador incêndio. É no âmbito do reconhecimento da necessidade da existência de um modelo de Teatro Nacional que surge a ideia e a oportunidade para criar, pelo País fora, outros teatros de âmbito público (nacionais/regionais) e sair do ‘espartilho lisboeta’.
Da discussão e análise da situação aparece a oportunidade de ‘aproveitar’ as instalações do histórico teatro Garcia Resende, em Évora, e dotá-lo de condições humanas, técnicas e logísticas para funcionar como um Centro Cultural (polivalente mas baseado na atividade teatral) de certo modo decalcando experiências que já existiam pela Europa fora.
 
Mário Barradas aderiu entusiasticamente a este projeto oferecendo-se para deixar os programas que estava (na altura) envolvido na cidade de Lisboa e ‘marchar’ para o Alentejo, prontificando-se para colocar em prática este pioneiro modelo de descentralização cultural.
Nasceu assim o Centro Cultural de Évora que viria, com o decorrer do tempo, a transformar-se no atual CENDREV (Centro Dramático de Évora).
 
O CENDREV é uma das (muitas) vítimas do novo modelo de apoio às artes. Ficou, na primeira abordagem trazida a público, fora dos organismos teatrais que mereceriam o apoio público. De uma assentada deita-se para o lixo o trabalho, o saber e a dedicação que Mário Barradas e os seus colaboradores passados e presentes emprestaram a este projeto, um dedicado esforço no estudo, formação, produção e divulgação da atividade teatral, das técnicas de montagem e criação cénica, da encenação, da criteriosa escolha e divulgação de repertório dramatúrgico de qualidade e, ainda, na preparação de atores que, ainda hoje, enchem os palcos pelo País.
 
Foi  brutal a sensação de incomodidade que se instalou naqueles que se interessam pelas artes cénicas quando foi conhecido o novo modelo de ‘apoio às artes’ e se constatava que este importantíssimo centro criativo de arte dramática, nascido nos alvores do 25 de Abril, tinha sido votado ao ostracismo dos apoios públicos (esperemos que só 'isso'), num inexplicável exercício de rateio contabilístico que nada tem a ver com uma outra nobre questão que é a ‘política cultural’, necessária para um País tão carenciado e necessitado de ter um desenvolvimento equilibrado.
 
A memória desse vulto teatral - que foi Mário Barradas - veio ao de cima e a pergunta que caiu na ribalta das especulações, foi: o que diria o intempestivo Mário acerca deste tremendo dislate?
Bem, é fácil adivinhar. Mário Barradas antecipou a resposta há cerca de 9 anos, sem esconder-se por detrás de ambiguidades ideológicas como é comum nos dias que correm e com a frontalidade que lhe era habitual.
Disse: “Partilho a ideologia marxista-leninista e tenho nojo daquilo em que Portugal se está a transformar. E sou um homem de teatro, actor e encenador, mas nunca me misturei com o que considero o gosto do dinheiro, o facilitismo e a falta de rigor” (In Autobiografia, Jornal de Letras, 29 de Julho - 11 de Agosto de 2009).
 
Ficou tudo dito atempadamente ou, melhor, antecipadamente.

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