Olhando (epidermicamente) para a ‘crise cultural’…

A balburdia que se instalou no País à volta dos apoios públicos à atividade cultural deve ser entendida como uma salutar reação ao constante atropelo que se instalou à volta de uma dimensão de cidadania fundamental.
 
Os cidadãos merecem que se proteja uma produção cultural livre, qualificada e aberta e, por outro lado, os bens culturais devem ser acessíveis a todos. Concomitantemente, será necessário estimular o gosto pela participação e usufruto das actividades culturais enfatizando a sua crucial importância na formação integral do cidadão.
 
O 25 de Abril revelou diversas fragilidades, insuficiências e incongruências do diversificado ‘aparelho de produção cultural’ seja público, independente ou ligado ao movimento associativo. Antes - no tempo da ‘velha senhora’ - existia a convicção de que a produção cultural nacional (literatura, cinema, teatro, música, pintura, dança, etc.) tinha imensas e inatas capacidades, mas estava manietada por uma repressiva e castradora censura.
 
Após a manhã redentora de Abril de 74 muitos ficaram à espera desse anunciado ‘boom cultural’. Tal não aconteceu – pouco ‘material cultural encarcerado e embalsamado’ saiu das estantes, dos prelos, dos palcos, das telas, etc. - embora seja de elementar justiça acrescentar que a actividade cultural ‘global’ exibiu progressos, vivificou-se no respirar de liberdade e, apesar de todos os condicionalismos, impôs uma marcante presença na sociedade portuguesa.
 
Na verdade, será da análise de dois vectores essenciais – os processos de produção (criação) de bens culturais e a acessibilidade aos mesmos – onde se situam os problemas a resolver e os obstáculos a contornar.
Um governo – qualquer que seja – não pode limitar-se a apoiar organicamente (mecanicamente) os criadores culturais e lançar dinheiro de  modo avulso sobre projectos indiferentemente do seu valor (cultural, entenda-se), isto é, subsidiando de igual modo os relevantes, os bons, os medíocres, os pouco avaliados passando pelos utópicos e indo até aos (aparentemente) absurdos.
 
É interessante recordar que estes epítetos em cultura têm um valor relativo e uma interpretação específica. Por exemplo, o termo ‘absurdo’ que é uma designação para a incoerência, a contradição, a insensatez, etc., veio a caracterizar um tipo de teatro (‘teatro do absurdo’) onde se encaixam gigantescos vultos da dramaturgia e das artes dramáticas, que englobam Ionesco, Beckett, Adamov, Pinter, Genet, etc..
Não esquecendo, por estar mais próximo geograficamente de nós, o ‘ibérico’ Fernando Arrabal que com o ‘movimento Pánico’ estabeleceu uma curiosa e frutuosa ligação entre o surrealismo e a provocação (artística).
 
Ora, será fácil de entender se um qualquer burocrata investido no papel de decisor cultural analisasse um projecto de teatro, denominado de ‘absurdo’ ou uma movimentação artística caracterizada como de ‘pânico’ (manifestação fóbica?), afiasse de imediato o lápis vermelho (após o fim da censura continuam a existir na mãos dos gestores) para eliminar tamanho despautério.
 
O importante é existir uma política cultural, pública, coerente e sólida mas que não seja dirigista. O Estado não deve acomodar-se (restringir-se) no papel de financiador e demitir-se dos problemas de divulgação e da acessibilidade das produções culturais, isto é, das infra-estruturas culturais.
Um dos grandes problemas do dirigismo nos dias de hoje não é exactamente o colocar a cultura ao serviço de uma ideologia ou de um regime, mas das sacrossantas ‘regras de marketing’ (que não são ideologicamente neutras).
 
A transformação do ‘ambiente cultural’ num 'mercado artístico', dependente exclusivamente da lei da oferta e procura, possui nas suas entranhas o vírus da distorção carregado de (carreado por) múltiplas tentações dirigistas.
 
Por outro lado, a fiscalização - ou uma hipotética regulação deste 'mercado cultural' - assenta em factores muito subjectivos que não cabem numa folha de Excel. Tentar fazer passar a ideia de que a avaliação dos subsídios se rege por critérios objectivos é uma enormidade e amiudadas vezes dará origem a injustiças, a marginalizações e a exclusões.
 
Tem sido esta a postura burocrática do actual Ministro da Cultura, do seu secretário de Estado e da Direcção-Geral das Artes.
 
Por fim, a preocupação transversal do País em aumentar o índice das exportações pode levar a arte, valiosa em termos da afirmação de portugalidade – ou de lusitanidade – a enveredar prematuramente por este caminho, sem cuidar da promoção e consolidação cultural dos cidadãos (cá dentro). Não se compreende porque na grelha de apoio publicada pela DGArtes a ‘internacionalização’ surja à cabeça dos critérios divulgados link. Nas artes - como de resto na vida - é necessário fazer previamente o trabalho de casa. Tarefa para as estruturas artísticas no terreno, estímulo para o aparecimento de novas e responsabilidade para o Estado que continua distante (ausente) de promover um efectivo apoio (à produção artística e acessibilidade aos espectáculos) traduzido no famoso percentil de 1% do PIB que deveria ser dedicado à Cultura (e continua na gaveta dos programadores orçamentais).
 
Não estamos em condições para enfrentar novos casos de abandono ou de exclusão como o da pianista Maria João Pires que, em 2009, trocou a cidadania portuguesa pela brasileira link. por insuficiência de condições para a criação artística.
 
Apostila:
Em posterior post analisaremos os critérios adotados pela DGArtes para o próximo triénio (2018-2021).

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Divagando sobre barretes e 'experiências'…

26 de agosto – efemérides