Caros leitores (3) – A invasão do Irão por Israel (4949 carateres)
Na sequência do texto de Pedro Queirós que aqui divulguei,
acho importante transcrever o comentário de um seu amigo, Frederico
Nolasco, e a resposta do Pedro. É uma forma de conhecer posições de dois
portugueses, com conhecimento do país, sem embarcarem na retórica sionista.
Este é o meu contributo para chamar a atenção para a
realidade que me interpela e que recuso observar pelo prisma maniqueísta
das redes sociais ou pelo fanatismo ideológico militante. Boa leitura para quem
quiser informar-se e apreciar duas versões, não opostas, de dois amigos, ambos apologistas da paz e da não violência.
Frederico Nolasco:
《Querido Pedro, não me arrogo minimamente a conhecer ou
dissertar sobre o país onde vives há que tempos, sendo que estive por aí
durante 1 mês e picos.
Mas não deixo de olhar para o que escreveste tendo eu um
certo distanciamento da realidade, que tu, vivendo aí, não tens.
Não é por Israel atacar agora o Irão que temos de fazer uma
dicotomia entre bom e mau. Não é por Netanyahu ser a real besta que é que
devemos descurar as bestialidades do regime.
Não é por no ocidente a liberdade de expressão dar origem a
que os idiotas tb possam ter uma voz, e as consequências do que essa liberdade
traz na era da internet, que devemos pôr em causa o princípio em si da
liberdade de expressão.
Falaste dos mullahs e sacerdotes não molestarem crianças,
numa clara comparação ao que acontece com os padres. A questão é que durante o
salazarismo tb "não havia corrupção" por cá. Para estas pessoas serem
expostas tem de haver um funcionamento decente do quarto poder e o regime
iraniano claramente protege os seus líderes e representantes religiosos.
O que eu vi no Irão quando aí estive foi uma geração
absolutamente desesperada para se ver livre da ditadura religiosa. O que eu vi
foram as pessoas educadas, maravilhosas, de uma cultura e sabedoria
impressionantes, que referiste – completamente estranguladas por um regime
completamente anacrónico e retardado.
Não há pornografia? Acedem a tudo através de VPN. Não há
álcool? Em esfahan o hamid reza comentou comigo que o irmão era alcoólico.
"Como assim, aqui não há álcool!?" - "como é que as pessoas no
ocidente são toxicodepentes? A droga é legal?"
O tráfico de álcool oriundo da Arménia já nem sequer é
combatido. É uma guerra perdida.
Lembro-me da querida mahtab, que agora estuda medicina, com
15 anos, deprimida por olhar para a frente para uma realidade que não queria
que fosse a dela. Lembro-me de a ver a implorar a Rita que tirasse o hijab mal
entrou em casa. Como um símbolo de nojo da opressão sofrida. No Irão, a vida da
mulher vale metade da de um homem. Indemnizações, etc, valor a metade.
O Mohammed, em resht, era um militante ateu, escondido.
Dizia que o ateísmo era a religião que mais crescia no Irão. Falava na crise
económica crónica e na corrupção sistémica que mantém o país preso à pobreza
apesar de ter os quadros que tem e os recursos naturais. O Mohammed, como todos
os outros jovens que conheci, queria viver numa democracia liberal. Mas para
sair do pais só pode dar um pulinho à Arménia ou à Rússia.
A Sonya dizia que gostava do Trump pq o Trump estava, na
altura em que rasgou o tratado nuclear, a fazer a vida mais difícil aos
ayatollahs. Numa daytrip conhecemos um grupo de malta que chamava mushroom
heads aos mullahs, em referência obviamente fálica 🤣
No deserto do naranjab estivemos com uma família que levou o
carro para o meio do deserto, abriu as portas e bombou o seu sound system em esteroides
para poder sentir a liberdade de dançar. Porque o ridículo da moralidade do
regime proíbe as pessoas de dançar em público.
Entrava nos táxis e perguntava: khamenei, rhub? - rhub
nist! Rhub nist! Mesmo as classes
desprivilegiadas, senti que estavam fartas. Claro, existe aquela enorme camada
da população que veste chador e vive do culto aos shahid, aquela obsessão com a
guerra contra o Iraque, etc. Mas, na minha experiência, foi uma minoria....
Aconteceu, uma vez, quando estávamos a norte de Teerão num shrine QQ aos
soldados mortos, que uma velha ressabiada de chador veio chatear a Rita a
puxar-lhe o véu para a frente pq tava muito descaído. Foi praí a única
instância em que sentimos o peso daquele conservadorismo bafiento a cair nos em
cima.
Enfim, tinha de deixar claro aquilo que senti, aquilo que
vivi nesse que é, agora, tb o teu pais.
Vi um povo amordaçado. Vi as mais bonitas pessoas com que me
cruzei em viagem absolutamente amarradas a uma realidade de opressão. Com
prisões políticas como a de evin. Com leis arbitrarias e execuções sumárias. Um
regime apodrecido que teme a sua juventude, uma juventude que quer mais para
além do velayat al faqih e dominio absoluto da moral religiosa, hipócrita e
corrupta.
Amo o povo iraniano. E por isso aprendi a abominar aquele
regime! Isso não dá razão a netanyahus desta vida
Forte abraço!
Resposta de Pedro Queirós:
Frederico Nolasco como estás meu caro? Obrigado por este
testemunho. Devias guardá-lo para o futuro. Lembras-te quando nos encontramos
num hospital em Teerão? Que clássico!
Sobre os conteúdos: o meu post foi escrito com o coração nas
mãos. Como deves compreender muito ficou por dizer e explicar. É um post de
alguém cansado e que tenta antecipar as críticas e mentiras do costume
associadas ao Irão.
Para que fique claro: o povo iraniano está cansado deste
regime ultrapassado e opressivo. A minha família partilha desta opinião. Mas
ninguém quer as bombas de Israel ou a ajuda americana para derrubar o governo.
A mudança tem que vir de dentro.
De resto não vou dissertar muito sobre as questões do
álcool, pornografia e pedofilia. Claro que podem ser encontrados, mas não
estamos a falar de uma sociedade decadente como o são a Europa ou os Estados
Unidos.
Mas ainda bem que conheceste pessoas incríveis no Irão, pois é isso que mais amo no país. Muitas delas, se calhar, morreram nos últimos dias ou estão prestes a ser bombardeadas. Um abraço meu amigo.
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