Creio na ressurreição e no ámen, só não acredito na vida eterna (texto atualizado)
Há catorze anos vi-me suspenso, por duas jovens enfermeiras, a caminho do banho. Pensei que quatro décadas antes não seriam elas a levar-me, inversa seria a situação, mas não adivinhava o que sucedera e porque não me obedecia o corpo.
Descri da minha identidade, pedi a um enfermeiro para ver na NET o meu nome, queria certificar-me de quem era. Vi a minha mulher, reconheci-lhe a voz doce a segredar-me que fora grave a situação, dir-me-ia tudo à medida que perguntasse e preveniu-me para ter cuidado com o que dizia, tinha falsas memórias, mal comecei a falar logo inventei um cancro a uma amiga comum, reformei outra, com 40 anos, e debitei tolices várias.
O lençol pesava como uma montanha que me esmagasse os dedos, o corpo era como um vegetal movido pela força braçal de quem de mim cuidava. Lembrei-me de ter saído de casa com vómitos incoercíveis e dores abdominais violentas, e não estabelecia o nexo de causa e efeito. Não acreditaria ter passado cinquenta e quatro dias sem memória.
Pedi o jornal e li, mas tiveram de segurar-mo. Pesava como chumbo o diabo do papel. Li e fiquei feliz, sem euforia. Quis escrever e só saíram riscos da luta da esferográfica contra o papel que fugia. Que raio de vida! Afinal, não aguentava o peso da esferográfica. E não me fazia entender. Devo ter ficado naquele quarto, isolado, a fazer o desmame do propofol.
Poucos dias depois tive alta. Ora de cadeira de rodas, ora ao colo, entrei e saí do táxi, do hospital para casa. Levaram-me ao colo até ao quarto, onde tudo era familiar. Não conseguia pôr-me de pé, mas sentia ter valido a pena o quer que tivesse acontecido, para desfrutar, um dia que fosse, a ternura da mulher, contida na exteriorização dos afetos, e intensa na dedicação e no amor incessante de sempre.
Afinal, na sequência da colecistectomia laparoscópica, na primeira vez que adoeci, uma bactéria tomou conta dos pulmões, primeiro, do fígado a seguir e, finalmente, dos rins, à falsa fé, sem a mais leve noção da minha parte, alvo de transfusões e diálise, sem saber, ainda hoje, porque não desligaram a máquina que me amarrou 52 dias após a cirurgia que precedeu o coma profundo que me reduziu a um vegetal esburacado com tubos, que a minha mulher observava aflita e emocionada, todas as horas consentidas em cada dia.
Gozei as delícias do nada de que falava Schopenhauer. Sofreram a mulher e os filhos, os irmãos e os amigos, e reiniciei a vida como criança, precisando de mão alheia para dar os primeiros passos, comer, voltar ao mundo dos vivos depois de ter experimentado a dimensão em que só existe o nada, sem um ser imaginário para me julgar, um rio de mel ou, pelo menos, uma das 72 virgens que aguardam os facínoras que a fé torna violentos.
Aprendi com uma pseudomona multirresistente que vale mais um só dia vivo do que a eternidade morto. E soube, como se não o adivinhasse em cada dia de tantos anos, do que uma mulher pode, da dádiva da vida de que é capaz, da reserva de amor que guarda.
Há catorze anos, no dia de hoje, 61 dias depois, regressei a casa, desmorrido.
Texto autobiográfico. Quinta-feira, 12 de junho de 2025
Carlos Esperança
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