O Veríssimo, com dois «ss». (Crónica)
O Mário Veríssimo era delegado de propaganda médica, grande, bem disposto, de respostas rápidas e desconcertantes. De manhã frequentava o Hospital da Universidade e à tarde fazia-se acompanhar da pasta, da Portagem até à Casa de Saúde de Coimbra, em busca de médicos para visitar. No caminho saudava dezenas de amigos e conhecidos enquanto percorria pachorrentamente as ruas Ferreira Borges, Visconde da Luz e Sofia.
Às vezes fazia um pequeno desvio, a meio da tarde, a aconchegar a mucosa gástrica, com fritos de primeira e uns copos de tinto a condizer, na Baixinha, uma tasca bastante popular onde não faltavam fregueses a matar o ócio e a sede.
Das muitas respostas da sua lavra ficara na memória a que dera ao Dr. Mello, cioso da ortografia arcaica do apelido. Ao receber a queixa por o laboratório de que era delegado ter dirigido uma carta em nome de Melo, com um único «l», para ele Dr. Mello, de consoantes dobradas e sólidos pergaminhos, retorquiu de imediato que não ligasse, a culpa era da dactilógrafa que fazia sempre isso, a ele próprio Veríssimo, que escrevia continuamente só com um «s».
No início da década de setenta do século passado o combóio, para partir, já não esperava na estação velha a chegada do Prof. Bissaya Barreto. Aos poucos o País fazia a exumação dos medos no cemitério da memória salazarista. Os polícias ainda se julgavam impunes mas os cidadãos já se afoitavam a desafiar os medos e os modos. Mesmo em Coimbra.
Então, numa tarde, junto ao Banco Fonsecas & Burnay, na Rua Visconde da Luz, um automóvel estacionado tinha no capô a pasta e no pára-choques dianteiro, a servir de estribo, o sapato cujo atacador o Veríssimo apertava. É nessa situação que se abeira um polícia e lhe pergunta se acha que o carro está bem estacionado, ao que responde, podia estar pior. O pequeno homem, ajudado pela farda mais o poder de que se sentia investido, havia de julgar-se bem acima de um civil, ainda que de fato, gravata e mais vinte e cinco centímetros de altura. Por isso não tolerou a desfaçatez da resposta e ordenou-lhe, ríspido, que tirasse imediatamente a viatura.
Tendo ouvido, não tiro, firme e definitivo, perdeu o cívico a compostura e deu-lhe ordem de prisão. Acompanhe-me – disse – e empertigou-se dentro da farda enquanto levava a mão ao cassetete. E lá seguiram os dois a caminho da esquadra, que era perto. Passaram em frente do Café Santa Cruz que, àquela hora, regurgitava de clientes surpreendidos ao verem o Veríssimo conduzido por um pequeno polícia cheio de autoridade e determinação, a mostrar quem manda. Logo alcançaram a esquadra, ao dobrar da esquina, no outro lado da rua.
Mal entraram, o polícia anunciou respeitosamente ao chefe que aquele condutor lhe desobedecera, recusando-se a retirar o carro mal estacionado. A situação era grave, era bom de ver, tinha havido resistência, não senhor, apenas desobediência, o que não era pouco, à frente dos transeuntes, num claro desafio à autoridade.
Logo apareceu um subchefe, que, sem subchefe, nem chefe é chefe, e outro polícia para escrever o auto de notícia para os fins convenientes, dê-me o bilhete de identidade, a carta de condução, como se chama, hesitou no nome, olhou de novo a carta de condução, a certificar-se que Veríssimo se escrevia com dois «ss», o nome do pai, o da mãe, a profissão, a naturalidade, a morada. Após o árduo trabalho o dactilógrafo deu um suspiro de alívio e declarou, já está, enquanto fazia uma pausa canónica para iniciar a redacção do libelo acusatório. É nesta altura que o chefe, com gestos estudados, depois de ordenar ao polícia que se prepare para escrever, se empertiga para o Veríssimo e lhe pergunta:
– Então, senhor Veríssimo, por que não tirou o carro?
– Porque não era meu.
Nota - Esta e outras crónicas dominicais foram publicadas no «Jornal do Fundão».
Às vezes fazia um pequeno desvio, a meio da tarde, a aconchegar a mucosa gástrica, com fritos de primeira e uns copos de tinto a condizer, na Baixinha, uma tasca bastante popular onde não faltavam fregueses a matar o ócio e a sede.
Das muitas respostas da sua lavra ficara na memória a que dera ao Dr. Mello, cioso da ortografia arcaica do apelido. Ao receber a queixa por o laboratório de que era delegado ter dirigido uma carta em nome de Melo, com um único «l», para ele Dr. Mello, de consoantes dobradas e sólidos pergaminhos, retorquiu de imediato que não ligasse, a culpa era da dactilógrafa que fazia sempre isso, a ele próprio Veríssimo, que escrevia continuamente só com um «s».
No início da década de setenta do século passado o combóio, para partir, já não esperava na estação velha a chegada do Prof. Bissaya Barreto. Aos poucos o País fazia a exumação dos medos no cemitério da memória salazarista. Os polícias ainda se julgavam impunes mas os cidadãos já se afoitavam a desafiar os medos e os modos. Mesmo em Coimbra.
Então, numa tarde, junto ao Banco Fonsecas & Burnay, na Rua Visconde da Luz, um automóvel estacionado tinha no capô a pasta e no pára-choques dianteiro, a servir de estribo, o sapato cujo atacador o Veríssimo apertava. É nessa situação que se abeira um polícia e lhe pergunta se acha que o carro está bem estacionado, ao que responde, podia estar pior. O pequeno homem, ajudado pela farda mais o poder de que se sentia investido, havia de julgar-se bem acima de um civil, ainda que de fato, gravata e mais vinte e cinco centímetros de altura. Por isso não tolerou a desfaçatez da resposta e ordenou-lhe, ríspido, que tirasse imediatamente a viatura.
Tendo ouvido, não tiro, firme e definitivo, perdeu o cívico a compostura e deu-lhe ordem de prisão. Acompanhe-me – disse – e empertigou-se dentro da farda enquanto levava a mão ao cassetete. E lá seguiram os dois a caminho da esquadra, que era perto. Passaram em frente do Café Santa Cruz que, àquela hora, regurgitava de clientes surpreendidos ao verem o Veríssimo conduzido por um pequeno polícia cheio de autoridade e determinação, a mostrar quem manda. Logo alcançaram a esquadra, ao dobrar da esquina, no outro lado da rua.
Mal entraram, o polícia anunciou respeitosamente ao chefe que aquele condutor lhe desobedecera, recusando-se a retirar o carro mal estacionado. A situação era grave, era bom de ver, tinha havido resistência, não senhor, apenas desobediência, o que não era pouco, à frente dos transeuntes, num claro desafio à autoridade.
Logo apareceu um subchefe, que, sem subchefe, nem chefe é chefe, e outro polícia para escrever o auto de notícia para os fins convenientes, dê-me o bilhete de identidade, a carta de condução, como se chama, hesitou no nome, olhou de novo a carta de condução, a certificar-se que Veríssimo se escrevia com dois «ss», o nome do pai, o da mãe, a profissão, a naturalidade, a morada. Após o árduo trabalho o dactilógrafo deu um suspiro de alívio e declarou, já está, enquanto fazia uma pausa canónica para iniciar a redacção do libelo acusatório. É nesta altura que o chefe, com gestos estudados, depois de ordenar ao polícia que se prepare para escrever, se empertiga para o Veríssimo e lhe pergunta:
– Então, senhor Veríssimo, por que não tirou o carro?
– Porque não era meu.
Nota - Esta e outras crónicas dominicais foram publicadas no «Jornal do Fundão».
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Chama-se Mário Veríssimo.Vive em Coimbra.