Atropelo à liberdade 2

O debate na Áustria sobre as mesquitas, a aí denominada Minarettenkrieg (guerra dos minaretes), tem estado na ribalta da discussão política. Os partidos da extrema direita xenófoba, FPÖ e BZÖ, que reúnem 17% dos votos, têm feito desta questão cavalo de batalha. Os partidos mais à esquerda, Verdes e Comunistas, são no entanto favoráveis à construção de mesquitas. O que choca é a pusilanimidade dos conservadores (ÖVP), que para evitarem perder votos entre os cidadãos católicos, a sua principal clientela, e dos social-democratas (SPÖ), que apesar de se oporem à proibição, optam por não abrir outra frente de atrito com os conservadores, uma vez que a grande coligação de centro (ÖVP-SPÖ) se encontra em forte risco de desintegração.

A Áustria é um país extremamente conservador, autoritário e católico, tendo a ICAR uma influência enorme na política e na sociedade, muito mais que em Portugal. Um país em que um cidadão que cometa uma qualquer infracção leve do código da estrada é ameaçado com pena de prisão em caso de não pagamento pontual da multa. Um país em que a hierarquia social é pesadíssima. Um país em que os títulos académicos fazem parte integral do nome do seu titular, no bilhete de identidade, no passaporte eu outros documentos. Um país em que a incitação à xenofobia é lugar comum do discurso político. Um país em que muito poucas mulheres alcançam lugares de relevo na política, nas universidades ou nas empresas. Um país em que todos os cidadãos e residentes estão obrigados a registar a sua confissão religiosa, e a pagar um imposto religioso de 1% do seu vencimento à igreja da confissão declarada: um autêntico imposto mafioso, uma vez que a Igreja Católica sabe quem está registado e quem paga, e muitas pessoas têm medo de não estar inscritas como católicas, com receio de represálias laborais e perda de oportunidades. 

O direito de edificar um templo é algo que pertence sem margem a qualquer dúvida ao direito de liberdade religiosa. Um estado de direito democrático não pode restringir esse direito. A Áustria, se persistir nesta posição, deverá preparar-se para o descrédito perante os seus pares, bem como uma humilhante condenação futura no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Um país como a Áustria, com um passado muito duvidoso relativamente ao tratamento de minorias étnicas (e muito especialmente durante o período de 1938-1945), não se pode permitir qualquer excesso nesta matéria.

Comentários

Anónimo disse…
Rui Cascao:

Obrigado por um post tão esclarecedor.

Um colaborador assim deve ser mais assíduo a escrever.
Anónimo disse…
Lendo o texto na diagonal poderemos supor que se escreve sobre Cuba, Afeganistao ou um qualquer estado totalitário, mas nao, é sobre a Aústria. Aquele país com índices de desenvolvimento económico e humano que nos deixa milhas e com uma democracia consolidada há bem mais tempo que Portugal.

Podendo concordar-se com a conclusao a que se chegou, nota-se que o caminho percorrido para lá chegar encontra-se juncado de disparates nao faltando claro, o estafado argumento do período de 1938-45.

Aguardamos o "atropelo à liberdade 3" onde nos pode dar a conhecer a queima de judeus, bruxas e quejandos na Viena actual e partilhar com todos os leitores os relatos dos desafortunados refugiados austríacos em fuga da opressao, que pululam em todos os países desenvolvidos em busca de uma vida melhor.
Anónimo disse…
Caro RC, nao deverá levar a mal este pequeno exercício de ironia mas no meu entender a realidade austríaca é muito melhor do que aquela que descreveu.
Rui Cascao disse…
Obviamente que a Áustria não é um país como Cuba ou o Afeganistão. No entanto, como residente na Áustria há já dois anos, descrevo uma experiência que dificilmente escapa ao olhar de um turista que se passeia pelos museus de Viena ou pelas pitorescas ruas de Salzburgo. Sugiro, sem ofensa, aos leitores que me acusam de falta de realismo na análise da situação austríaca que, na sua próxima visita, se afastem algo mais dos bem cuidados centros históricos, dêem um passeio pelos degradados bairros onde vivem os imigrantes, e que apreciem em período eleitoral os coloridos e eficazes cartazes dos partidos de extrema direita com parangonas como "Pátria em vez de Islão", "Nós limparemos Graz", "Schnitzel de Porco em vez de Ramadão" e outras pérolas quejandas. Sabendo que as personagens que figuram nesses cartazes estão sentados numa cadeira de deputado, vereador ou até ministro. Convido ainda essas pessoas a encetar uma conversação com um qualquer residente turco ou bósnio sobre a magnificência do establishment político-social austríaco.
Nunca disse que a Áustria não é uma democracia, mas que tão somente há factores sociais e de mentalidade que minam a efectivação prática de algumas dimensões do Estado de Direito Democrático, em particular no que diz respeito à liberdade religiosa, da integração de minorias e à emancipação das mulheres, o que, para os leitores apaixonados pelas estatísticas, está demonstrado à saciedade por estudos recentes.
e-pá! disse…
Na Austria, apesar do seu conservadorismo, os actuais problemas em matéria de liberdades têm um denominador comum:
Jorg Haider.

A UE já se imscuiu na questão das liberdades na Austria nos anos 2000.
A UE impôs sanções à Áustria, devido à formação do novo governo austríaco, que incluiu o Partido da Liberdade do mesmo personagem político - Jörg Haider.
Estas sanções que mereceram o apoio do PM português de então (António Guterres), não tiveram os resultados esperados.
A UE necessita de fazer esforços políticos e diplomáticos para não cair numa situação idêntica à de 2000, que primou pela ineficácia.
Não sei se o Tratado de Lisboa ajuda a resolver ou dificulta a resolução de situações deste teor.
Rui Cascao disse…
Algumas respostas aos comentários de alguns leitores:

Haider continua a ser um problema ainda hoje, mas está hoje em dia barricado na sua província da Caríntia, obtendo o seu partido (BZÖ) apenas 5% dos votos a nível nacional. Haider pouco mais pode fazer que arrancar clandestinamente algumas placas que assinalam em Esloveno (língua co-oficial na Caríntia) o nome das localidades à sua entrada.
O principal problema, na minha opinião, é o FPÖ, do qual Haider dissidiu há poucos anos, cujo líder Heiz-Christian Strache participou durante bastante tempo em movimentos para-militares neonazis na Alemanha. Partido ainda cuja candidata à Câmara Municipal de Graz (segunda maior cidade da Áustria), Susanne Winter, logrou a sua eleição como vereadora graças ao soez vilipêndio do Islão, do seu profeta e graças a alusões a alegados actos zoófilos dos fiéis dessa religião.
Haider está domesticado e restrito à pequena, isolada e conservadora província da Caríntia, e bastante agarrado ao seu trono de pequeno tiranete, ignorando os sucessivos acórdãos dos tribunais, rasgando-os em público, etc. O Estado austríaco só tem força contra quem não tem poder, contra aqueles que têm algum poder, agacha-se e varre o lixo para debaixo do tapete.

Para além disso, outro problema terrível da sociedade austríaca é a corrupção ao mais alto nível (apesar de também se sentir nas mais ínfimas coisas, tal como por exemplo no atendimento num hospital ou num serviço público). Quem se dê ao trabalho de folhear a imprensa austríaca verá pelo menos cinco escândalos recentes de elevadíssima magnitude:
- A corrupção do Estado Maior da Força Aérea para a adjudicação da compra de aviões de guerra ao consórcio Eurofighter
- A quase-falência do banco BAWAG, envolvido em negociatas triangulares com sindicatos, poder local e construção civil
- A queda de toda a cúpula da Polícia Judiciária em Viena, favorecida com favores sexuais em prostíbulos em troca de fechar os olhos às actividades de tráfico de pessoas e escravatura branca
- Os negócios dúbios do grupo financeiro Julius Meinl com o poder público
- O escândalo da venda de milhares de vistos Schengen a imigrantes ilegais

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