Exames de adultos a fazer de conta
A ditadura respirava saúde quando aos 18 anos, em outubro de 1961, me couberam três dúzias de alunos para ensinar a ler. Era uma escola masculina, que noutra não podia um professor lecionar. Os homens eram poucos no ensino primário, tão exíguo era o salário.
A coeducação era uma blasfémia que apenas em aldeias muito pequenas era consentida, sabido que os pais, o padre e a professora vigiariam os perigos que dos 7 aos 12 anos as hormonas podiam atrair.
Só o analfabetismo nos colocava então na vanguarda europeia. Só, não. A mortalidade infantil e a materno-fetal tinham também lugar saliente em estatísticas cuja publicação era vedada. Urgia alterar os índices de analfabetismo e dar o diploma da 3.ª ou 4.ª classe a quem mostrasse capacidade para assinar o nome, copiar umas frases e contar os dedos.
Dava mau aspeto e pior impressão aquela esponja com tinta que esperava o indicador dos portugueses, nas repartições públicas, para substituir as assinaturas por impressões digitais.
Salazar criou cursos de adultos. Os jogadores de futebol, ídolos da população, tiveram de sujeitar-se ao exame da 4.ª classe e as mulheres, eram sempre mulheres, que faziam a limpeza nos edifícios públicos, obrigaram-se a fazer a 3.ª, para manterem o trabalho. A carta de condução exigia a 4.ª classe, para obter o passaporte bastava a 3.ª.
Quando o padre Morgadinho me denunciou à Pide, por ser “um professor novo, atrevido e com cara de idiota”, nunca mais a polícia deixou de me vigiar e o Diretor, Manuel da Silva Mendes, de ameaçar com a demissão e, depois, com a intimação de não me querer no Distrito.
Foi por isso que fui parar à Lourinhã onde o Diretor de Lisboa me fez Delegado Escolar apesar de eu argumentar que não era da situação nem ia à missa, factos que o afligiram e não demoveram de me nomear, pois “uma mulher é que não pode ser”. Assim, num ato de exacerbada misoginia, foi exonerada a Delegada Escolar para eu assumir as funções. Era o melhor professor do concelho, sem precisar de ser bom, por ser o único.
Logo em outubro de 1963 passei a presidir aos júris de exame. Um dia era a empregada de limpeza do tribunal que chorava porque precisava da 3.ª classe para varrer o gabinete do Meritíssimo Juiz e o do Digno Agente do Ministério Público, no mês seguinte era a mãe do Presidente da Câmara que precisava da 4.ª classe para conduzir o Mercedes, era só o que lhe faltava para obter a carta que já estava combinada, enfim, todos os meses pelo menos duas dúzias de portugueses deixavam de ser oficialmente analfabetos.
No dia 10 de janeiro de 1966 fiz a chamada de 24 candidatos que iam fazer exame da 4.ª classe e lá entraram para a sala de exame. Uma rapariga, mais nova do que eu, disse-me que não a tinha chamado. Perguntei-lhe o nome e, ao dizer-mo, recordei-me que tinha faltado na véspera ao exame da 3.ª classe e comuniquei-lhe o facto. Desatou num pranto que me comoveu. Era por causa do passaporte, ia casar por procuração e juntar-se-ia ao marido que estava na Alemanha. Era grande a desgraça, já tinha o casamento marcado.
Perguntei-lhe se sabia escrever e ler alguma coisinha, que sim, poucochinho, mas sabia copiar e até fazia contas, se não fossem muito grandes. Raios parta a sorte. Fui buscar o requerimento em que ela solicitava autorização para fazer o exame da 3.ª classe e com uma borracha apaguei-lhe o 3 e, no mesmo lugar, disse-lhe para pôr um 4. Depois escrevi-lhe num papel «Ressalvo a rasura…» e mandei-a copiar para a folha de papel selado do requerimento, com o nome escrito por baixo.
A prova escrita decorreu com normalidade. Todos foram aprovados. Afixada a pauta, disse-lhe que viesse no dia seguinte fazer a prova oral. As minhas colegas estiveram de acordo em fazer 9 exames em vez de 8. Na manhã do dia 11 de janeiro de 1966, à hora habitual, lá estavam os nove candidatos. Às 13H00 estavam todos aprovados. A pauta tinha as três assinaturas dos membros do júri, presidente e vogais. A rapariga já podia, depois de casar canonicamente, ir ao encontro do futuro, algures na Alemanha.
Eu fui almoçar e aguardei o Tito, com quem viajei para Caldas da Rainha, onde, ao fim da tarde, recebi uma farda com botas muito maiores do que o pé. Parece que era normal. O adiamento da minha incorporação militar fora cancelado por ter sido o delegado de Francisco Salgado Zenha, no concelho da Lourinhã, nas falhadas eleições à Assembleia Nacional, em outubro de 1965.
Da jovem, que carecia da 3.ª classe e ficou diplomada com a 4.ª, num mais soube. Mas a data ficou-me gravado, por ela, e pela odisseia de quatro anos e quatro dias, que então teve início, e me levaria a Moçambique, por 26 meses, uma espécie de pena maior, com degredo, a que a minha geração foi condenada pelo crime de ser portuguesa.
Há datas gravadas na memória como ferro em brasa nas reses que vão para o açougue.
A coeducação era uma blasfémia que apenas em aldeias muito pequenas era consentida, sabido que os pais, o padre e a professora vigiariam os perigos que dos 7 aos 12 anos as hormonas podiam atrair.
Só o analfabetismo nos colocava então na vanguarda europeia. Só, não. A mortalidade infantil e a materno-fetal tinham também lugar saliente em estatísticas cuja publicação era vedada. Urgia alterar os índices de analfabetismo e dar o diploma da 3.ª ou 4.ª classe a quem mostrasse capacidade para assinar o nome, copiar umas frases e contar os dedos.
Dava mau aspeto e pior impressão aquela esponja com tinta que esperava o indicador dos portugueses, nas repartições públicas, para substituir as assinaturas por impressões digitais.
Salazar criou cursos de adultos. Os jogadores de futebol, ídolos da população, tiveram de sujeitar-se ao exame da 4.ª classe e as mulheres, eram sempre mulheres, que faziam a limpeza nos edifícios públicos, obrigaram-se a fazer a 3.ª, para manterem o trabalho. A carta de condução exigia a 4.ª classe, para obter o passaporte bastava a 3.ª.
Quando o padre Morgadinho me denunciou à Pide, por ser “um professor novo, atrevido e com cara de idiota”, nunca mais a polícia deixou de me vigiar e o Diretor, Manuel da Silva Mendes, de ameaçar com a demissão e, depois, com a intimação de não me querer no Distrito.
Foi por isso que fui parar à Lourinhã onde o Diretor de Lisboa me fez Delegado Escolar apesar de eu argumentar que não era da situação nem ia à missa, factos que o afligiram e não demoveram de me nomear, pois “uma mulher é que não pode ser”. Assim, num ato de exacerbada misoginia, foi exonerada a Delegada Escolar para eu assumir as funções. Era o melhor professor do concelho, sem precisar de ser bom, por ser o único.
Logo em outubro de 1963 passei a presidir aos júris de exame. Um dia era a empregada de limpeza do tribunal que chorava porque precisava da 3.ª classe para varrer o gabinete do Meritíssimo Juiz e o do Digno Agente do Ministério Público, no mês seguinte era a mãe do Presidente da Câmara que precisava da 4.ª classe para conduzir o Mercedes, era só o que lhe faltava para obter a carta que já estava combinada, enfim, todos os meses pelo menos duas dúzias de portugueses deixavam de ser oficialmente analfabetos.
No dia 10 de janeiro de 1966 fiz a chamada de 24 candidatos que iam fazer exame da 4.ª classe e lá entraram para a sala de exame. Uma rapariga, mais nova do que eu, disse-me que não a tinha chamado. Perguntei-lhe o nome e, ao dizer-mo, recordei-me que tinha faltado na véspera ao exame da 3.ª classe e comuniquei-lhe o facto. Desatou num pranto que me comoveu. Era por causa do passaporte, ia casar por procuração e juntar-se-ia ao marido que estava na Alemanha. Era grande a desgraça, já tinha o casamento marcado.
Perguntei-lhe se sabia escrever e ler alguma coisinha, que sim, poucochinho, mas sabia copiar e até fazia contas, se não fossem muito grandes. Raios parta a sorte. Fui buscar o requerimento em que ela solicitava autorização para fazer o exame da 3.ª classe e com uma borracha apaguei-lhe o 3 e, no mesmo lugar, disse-lhe para pôr um 4. Depois escrevi-lhe num papel «Ressalvo a rasura…» e mandei-a copiar para a folha de papel selado do requerimento, com o nome escrito por baixo.
A prova escrita decorreu com normalidade. Todos foram aprovados. Afixada a pauta, disse-lhe que viesse no dia seguinte fazer a prova oral. As minhas colegas estiveram de acordo em fazer 9 exames em vez de 8. Na manhã do dia 11 de janeiro de 1966, à hora habitual, lá estavam os nove candidatos. Às 13H00 estavam todos aprovados. A pauta tinha as três assinaturas dos membros do júri, presidente e vogais. A rapariga já podia, depois de casar canonicamente, ir ao encontro do futuro, algures na Alemanha.
Eu fui almoçar e aguardei o Tito, com quem viajei para Caldas da Rainha, onde, ao fim da tarde, recebi uma farda com botas muito maiores do que o pé. Parece que era normal. O adiamento da minha incorporação militar fora cancelado por ter sido o delegado de Francisco Salgado Zenha, no concelho da Lourinhã, nas falhadas eleições à Assembleia Nacional, em outubro de 1965.
Da jovem, que carecia da 3.ª classe e ficou diplomada com a 4.ª, num mais soube. Mas a data ficou-me gravado, por ela, e pela odisseia de quatro anos e quatro dias, que então teve início, e me levaria a Moçambique, por 26 meses, uma espécie de pena maior, com degredo, a que a minha geração foi condenada pelo crime de ser portuguesa.
Há datas gravadas na memória como ferro em brasa nas reses que vão para o açougue.
Ponte Europa / Sorumbático
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