Liminarmente, a imbricada questão síria…
Pende sobre a Síria um grave, e ao que parece insolúvel, problema. Aliás, os problemas já vêm de longe configurando aquilo a que se pode chamar a ‘guerra civil síria’, onde a rebelião contra o dinástico regime ditatorial de Al Assad envolve uma nebulosa de combatentes que integram várias facções extremistas islâmicas. E este envolvimento está muito longe de ser uma frente unitária e coesa. Vários interesses estão em jogo. Mais uma vez por detrás deste conflito bélico e da sua dimensão sangrenta está um problema religioso que se tornou recorrente no Médio Oriente.
A luta pela hegemonia regional entre sunitas (nomeadamente a Turquia, a Arábia Saudita e o Qatar) e outras facções islâmicas, no caso vertente alauíta (apoiados pelos xiitas do Irão e do Iraque).
Aparentemente, a luta contra o regime de Damasco seria conduzida pelo “Exército Livre da Síria” oriundo de fileiras dissidentes do regime de Assad mas que rapidamente se ‘deslocaram’ para a “Frente Al-Nusra”, uma milícia sunita e jihadista, descoordenada e desorganizada militarmente, mas estratégica para o derrube do actual regime sírio, onde ‘convivem’ um variado leque de ‘forças rebeldes’, com importantes ligações à Al-Qaeda.
São – apesar de todas as incongruências políticas - estas as “forças oposicionistas” que o Ocidente tem apoiado para derrubar a ditadura da família Al-Assad.
A partir de 2011, três dos principais países ocidentais (EUA, Inglaterra e França) têm armado e equipado esta miscelânea de milícias oposicionistas, sem qualquer tipo de controlo sobre a utilização dos meios bélicos e logísticos. Ao apoio ocidental soma-se a contribuição financeira, em recrutamento de ‘combatentes’ e, também, em armamento da Arábia saudita e do Qatar (e mais recentemente da Turquia).
Apesar deste empenhado envolvimento (e das espúrias alianças) o desenrolar da batalha síria não tem corrido bem. Primeiro, para a população ensanduichada entre combatentes de vários lados facto que provocou centenas de milhares de mortes e um maciço êxodo que hoje em dia representa uma das mais graves tragédias humanitárias do planeta. Depois, no campo militar, a evolução da guerra civil está longe de definir um ‘vencedor’. Finalmente, no terreno político, não existe qualquer clarificação, antes pelo contrário, o caso sírio cada dia que passa aproxima-se da inqualificável e indescritível ‘solução líbia’ onde o grande resultado foi o total desmantelamento do Estado (já incipiente no tempo de Kadafi) e a sua substituição por incontroláveis ‘senhores da guerra’.
O Ocidente tentou junto do Conselho de Segurança da ONU ‘criar’ uma ‘zona de exclusão aérea’ no território sírio com a fundamentação de proteger a população síria dos devastadores raides da Força Aérea.
Esta manobra política não resultou pelo ‘ veto’ da Rússia e da China. Na verdade - como se verificou na Líbia - a ‘exclusão aérea’ é um eufemismo para desencadear uma brutal intervenção militar com meios aéreos e balísticos sem colocar (visivelmente) tropas no terreno.
No seguimento desta ‘obstrução’ da China e da Rússia no CS da ONU, levanta-se, antecipadamente, o problema de um eventual uso de armas químicas. Este facto constitui a chamada ‘linha vermelha’ que levaria uma ‘coligação ocidental’ a intervir ao lado das milícias islâmicas na guerra civil síria.
Há algum tempo que – aqui e acolá – surgem as primeiras sugestões sobre um eventual uso de armas químicas. Recentemente, o Mundo é confrontado com dramáticas imagens reveladoras do uso de armas químicas nesta guerra. Antes que esteja concluída qualquer investigação independente (da missão do ONU no terreno) surgem incriminadas à luz do dia as Forças Armadas Sírias como as responsáveis por este crime de guerra. E as provas – tal como nas vésperas da guerra do Iraque – estão colhidas, são ‘irrefutáveis’ (para não dizer antecipadamente ‘fabricadas’). Há um facto preocupante no meio destas investigações: o principal falcão e defensor de uma intervenção militar na Síria – John Kerry – tem alguns deslizes na sua argumentação. Por exemplo, e como denunciou Putin, tentou passar a noção que desconhece a presença de elementos da Al Qaeda entre os combatentes revoltosos da Síria (integrando o grupo Jabhat al-Nusra) link.
O que parece provado tout court é que na Síria foram usadas armas químicas. Por quem é um assunto que não pode deixar de ficar em suspenso até existirem provas. Convicções, ou habilidosas construções, não chegam.
Esta lacuna compromete toda a sapiência que tem exibido em público sobre o que se está a passar na Síria. Quando se ignora (ou tenta ignorar) o trivial como é possível conhecer em pormenor a história do uso das armas químicas que pelas imagens divulgadas parece inegável mas a sua ‘assinatura’ necessita de reconhecimento cabal e formal.
Aliás, em termos de lógica, não é inteligível que o regime de Damasco tenha cometido a imprudência de praticar um ‘erro’ desta natureza, já que desde há muito é conhecedor que esse passo abriria as portas ao envolvimento no conflito de poderosas forças estrangeiras.
Mas a guerra síria continua a ser um ‘ninho de paradoxos’ capaz de desafiar a compreensão humana.
Resta admitir o cenário que este novo episódio possa ter a ‘virtude’ de forçar a Rússia e a China a sentarem-se à mesa das negociações para resolver o destino da guerra civil síria, poupando a continuação de uma carnificina a uma população indefesa, cuja dimensão do massacre já ultrapassou os limites do humanamente aceitável e entrou no domínio da barbárie. Esta a hipótese mais benigna.
Porque uma outra, por exemplo, este episódio ser a antecâmara de uma intervenção no Irão ou uma irracional aposta na generalização deste conflito pelo Oriente Médio são ambas demasiado más para ser consideradas.
Os próximos dias trarão novas achegas.
Comentários
Será pior pois há interesses pelos quais vale a pena lutar: petróleo e gás e a divisão dos despojos com ajustamentos territoriais de potências regionais.
Multiplicando-se o caos na zona - Iraque, Líbia, Tunísia, Egito – desprezando-se por agora os países que estão em lume brando à espera de oportunidade - mais possibilidades há de pulverização do poder e com isso o nascimento de algum que sirva os interesses estratégicos das potências ocidentais, da Rússia e da China. Os grandes da região, Turquia, Irão, Israel, Arábia Saudita ficarão com os despojos.
Há porém um problema que sempre se verifica nos conflitos armados: sabe-se como começam mas nunca como acabam.
O cinismo dos paladinos da liberdade e da democracia é que nos confundem com a sua lógica: convenções, tratados, morais, limites e legitimidades na guerra. Como se houve vantagem e dignidade diferente para o morto morrer com um tiro na cabeça, por deflagração de granada ou bomba ou gaseado.
Fazem-se as negociatas de venda de armas aos beligerantes para que se possam matar com eficácia e depois põem-se os diplomatas a trabalhar para encontrar soluções, não para aplica-las. Entretanto vão-se vendendo mais armas: mais dólares em caixa, e para tranquilizar os espíritos mais sensíveis chama-se a ONU para fazer caridade. Começam os grandes negócios humanitários.
A crise chegou até à ajuda humanitária: dizem que, por falta de fundos, vai haver triagem de refugiados – os que vale a pena assistir e os que ficam por sua conta e risco.
Há algum santo protetor do refugiado?
O controlo do pipeline Kirkuk-Ceyhan que liga a cidade curda de Kirkuk (Iraque) ao terminal petrolífero de Ceyhan na costa mediterrânea turca (onde vários oleodutos convergem) é uma - mas não a única - das chaves explicativas da guerra civil síria.
O rateio dos despojos das explorações petrolíferas do Próximo e Médio Oriente está, neste momento, a ser analisado (feito) na reunião do G-20 em S. Petersburgo e como é notório pelas desencontradas declarações de dirigentes políticos (ainda) não existe qualquer tipo de consenso. Não será fácil concertar posições entre Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido, África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, China, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, México, Rússia, Turquia e União Europeia.
A 'questão síria' não escapa a esta 'situação grupal' onde existem diversos graus de envolvimento e interesses divergentes, cada vez mais profundos, entre os países ditos desenvolvidos e os emergentes.