BRASIL - “não adianta chorar sobre o leite derramado”…

As recentes alterações políticas ocorridas no Brasil vêm levantar uma questão arrastada no tempo que, entretanto, permanecia adormecida. Na realidade, as eleições brasileiras são o mais recente episódio de uma centenária luta contra o socialismo protagonizada por uma elite política e financeira. Quando nos desfocamos deste ancestral problema corremos o risco de confundir o essencial com o acessório e perdermo-nos em minudências.

A Direita orquestrou um sem número de comentadores (alguns reivindicando o estatuto de ‘pensadores políticos’) na defesa da peregrina teoria de que o ocorrido nas eleições brasileiras é uma consequência direta dos ‘exageros’ (radicalismo) do PT que tem sido dirigido e influenciado por Lula da Silva. Esta imputação não é inocente e tem finalidades explícitas e objetivas. Visa, em primeiro plano, esconder a quota-parte – a responsabilidade última - que o liberalismo (nas suas variantes políticas, económicas, sociais) tem, na génese profunda, destas nefastas transformações que colocam em risco a Democracia e representam um retrocesso civilizacional.

Na verdade, as formas mais em voga das doutrinas neoliberais e ultraconservadoras tendem a desvalorizar os conceitos basilares democráticos incensando o papel motor que uma elite (seja empresarial, financeira ou um mix destas duas situações) representa para o desenvolvimento. A teoria de que o Estado deve ser reduzido à mínima expressão deixando os mecanismos promotores e reguladores do desenvolvimento da sociedade e a criação de riqueza entregue a um sacrossanto, idílico e transcendente mercado não é nova, nem sequer original.

Vilfredo Pareto, economista e sociólogo italiano do fim do século XIX e início do século XX, defendendo conceções sobreponíveis ao neoliberalismo de hoje, foi o verdadeiro inspirador e mentor do fascismo de Mussolini que endeusava a importância da força e denegria (combatia) quaisquer projetos igualitários sejam políticos, económicos, sociais e, até, culturais. O epicentro da luta estava concentrado no combate ao socialismo e o inimigo principal era a ex-URSS, bastião comunista.
 
Tratava-se – no fascismo de Mussolini - de dar expressão a um feroz combate aos ideais socialistas então em franca fermentação (início do século XX). Esta ‘repulsa’ continua a alimentar uma guerra sem quartel até aos nossos dias, sob os mais variados pretextos e nas burlescas mais condições.
O ‘mercado livre’ é na realidade pouco livre e sempre se mostrou atrelado a 3 premissas básicas que funcionam como diktats: privatizações, desregulamentações e cortes nas prestações sociais. Quando se contrariam estes postulados acabam as liberdades. Tem sido esta a cartilha desde que, em 1962, o guru da Escola de Chicago, Milton Friedman, publicou uma das recentes bíblias do neoliberalismo “Capitalismo e Liberdade”.

Existe um elo comum – se quisermos uma correspondência - entre estas transformações alimentadas pelas ideologias liberais e os movimentos fascistas. Nos anos 20 Mussolini procede a múltiplas privatizações (em nome dos contribuintes); nos anos 30, Hitler faz o mesmo na Alemanha e, finalmente, nos anos 70 Pinochet repete o esquema no Chile.

Hoje, quando olhamos as propostas de Bolsonaro para a Economia e Finanças, pouco mais existe a não ser o que Paulo Guedes anuncia (um lidimo discípulo de Friedman) e as premissas neoliberais estão aí todas estampadas, onde as privatizações, a desregulação dos mercados e o ataque ao Estado Social (‘reforma da Previdência e Segurança Social’) são os vetores determinantes.

Ora, é de supor que por via eleitoral, isto é, sem a necessidade de recorrer a um golpe de Estado formal, o Brasil, sob os auspícios de Bolsonaro, vai percorrer um caminho decalcado do regime ditatorial de Pinochet e a ‘ferro e fogo’ vai tentar impor uma paz social que permita sem percalços os bons negócios.
 
A ‘paz dos cemitérios’ vai substituir a turbulenta e violenta agitação social que grassa – é necessário repeti-lo - subsidiária da pobreza endémica e da fome. Os programas políticos que foram divulgados nas eleições presidenciais ou debruçam-se sobre questões de segurança (desgarradas das causas) ou sobre as saídas da crise económica e financeira (o ‘desenvolvimentismo’ é uma constante da política brasileira), mas pouco adiantam sobre caminhos para erradicar a pobreza e as desigualdades sociais que são determinantes e estão na remota origem de todos os problemas brasileiros.
Por outro lado, as Igrejas, nomeadamente as evangélicas, esforçam-se por divulgar a mensagem de que a pobreza faz parte a ‘lei natural’ da Humanidade e, por isso, é estranha ao sistema político. Perante este desformatado e alienante quadro foram escancaradas todas as portas ao populismo.

Por outro lado, o PT que exerceu responsabilidades da governação no Brasil desde 2003 até ao golpe contra Dilma Roussef (2016) não pode deixar de tirar ilações do sucedido. A tentativa de gerir com equilíbrios, com uma complacente postura neutral, as crises do capitalismo evitando as afrontar gera imensas fragilidades e elas estão bem à vista.
O liberal-socialismo é perigosamente inoperante e cedo submerge nas contradições do sistema virando-se contra os ocasionais promotores. Os problemas do PT não se encontram nas políticas que executou mas antes naquelas que renegou pressionado pelo sistema vigente e manietado por ‘preconceitos liberais’. E o sistema é – e continuará a sê-lo – eminentemente corruptivo. Ao misturar-se neste pântano o PT perdeu identidade e a ‘qualidade’ que o diferenciava da bagunça partidária brasileira. Descaracterizou-se e isso foi bem visível no 2º. mandato de Dilma (um ‘lulismo sem chama’) onde começaram a ser questionadas, pela Direita emergente, as conquistas sociais que até aí foram moeda de troca para a ‘tolerância’ do poder económico e financeiro ao PT.

O PT nasce de um amplo e heterogéneo movimento agregador de Esquerda que integra sindicalistas, intelectuais e artistas com um denominador comum: a oposição à ditadura militar brasileira. Ideologicamente opta por um ‘socialismo sul-americano’ demarcando-se do socialismo oficial ou, se quisermos, ‘real’, como também é denominado.
De qualquer maneira, nasce para combater o reformismo liberal dos tradicionais partidos sociais-democratas (abundantemente representados no espectro partidário brasileiro). Lula durante o 2º. mandato e depois Dilma procedem a uma nítida viragem política adotando - perante a gestação de uma larvar crise económica internacional - atitudes cada vez mais conservadoras e embarcaram nos mecanismos corruptivos de ‘compra’ de votos no Parlamento, dando continuidade a uma prática que já durava desde a presidência de Fernando Henriques Cardoso. Optam por entrar em ‘liberalidades políticas’, eminentemente corruptivas que, um dia, acabariam por vir à tona.

Quando chegou o momento de dispensar a ‘colaboração do PT’ a elite empresarial e financeira brasileira retirou-lhe o tapete, promoveu na sombra o impeachment de Dilma e abriu caminho a uma solução de Direita que estava em stand by desde 2003.
O deslizar para a Direita ganhou força e uma inusitada inércia, ultrapassou as expectativas e acabou por desembocar na candidatura de Bolsonaro, sustentada inicialmente pelos 3 B’s (Boi, Bala e Bíblia) e que decorre, numa primeira fase, perante alguma (prudencial) indecisão da elite financeira e empresarial (nacional e estrangeira), mas rapidamente viria a ser adotada e apoiada como ‘boa’ (a evolução bolsista assim o confirma).

A moral da história é simples: não foram as ‘tropelias’ do PT que conduziram a extrema-Direita ao poder mas antes as atitudes titubeantes e colaboracionistas com o sistema capitalista adoptadas pelos Governos de Lula (2º. mandato) e Dilma que, pervertendo o seu projecto ideológico original, nativo, entregaram literalmente o ouro ao bandido.

A ‘resistência’ à governação de Bolsonaro - anunciada vaga e desorganizadamente por alguma Esquerda - passa necessariamente pela construção de uma ampla frente de unidade democrática mas também pela redefinição das questões doutrinárias e ideológicas dos partidos e movimentos que a venham a integrar e que exprima, sem embustes ou hesitações, as bandeiras políticas de – e para o – futuro da grande Federação brasileira. Sem esse passo rectificador a Oposição a Bolsonaro pouco mais fará do que entreter-se a ‘chorar sobre o leite derramado’ (para usar uma corrente expressão brasileira).

Comentários

Manuel Galvão disse…
Isto do Brasil ensinou-nos que, por agora, não é necessário promover golpes de estado militares para conduzir países em vias de desenvolvimento para os braços dos Economistas de Chicago.

Muitos dos que apoiaram Bolsonaro, se tivessem acompanhado a evolução social e económica do Chile, sabiam que também eles não vão ganhar nada com esta mudança de regime...
e-pá! disse…
Manuel Galvão:

O problema - em qualquer parte do Mundo - é o liberalismo eleger como inimigo principal o socialismo e desguarnecer o flanco direito.
Quando menos espera está a ajudar a Extrema-Direita a crescer e a tomar o poder.
Liberalismo é substancialmente diferente de fascismo mas as alianças que o liberalismo constrói (...e o caso Bolsonaro é também isso) mostram-se incapazes de conter (deter) o extremismo de Direita.

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