ENFERMAGEM: o misterioso trânsito de uma situação plena de razão para uma incompreensível ‘greve ad libitum’?

O País discute alegremente o IVA das touradas e, simultaneamente, os enfermeiros estão a desenvolver paralisações seletivas - uma chamada ‘greve cirúrgica’ – que, em última análise, pode acarretar consequências graves sobre o SNS.

Ninguém pode ignorar que os enfermeiros têm reivindicações profissionais a fazer e que estas contêm largos ingredientes de justiça. No entanto, uma coisa é a justeza profissional outra será a justiça social. Por cima disto paira a absoluta legitimidade do recurso à greve como arma de luta dos trabalhadores, mas não é isso que está em discussão.

Na verdade, sendo o SNS é um pilar do Estado Social, em larga medida, o seu sucesso (a sua capacidade de resposta) depende da colaboração, motivação e desempenho dos profissionais que aí trabalham. Não está em causa a análise valorativa - absoluta ou relativa - de os diferentes sectores profissionais com funções distintas e responsabilidades diferentes.

A situação dos enfermeiros - desde a necessidade de adaptar os recursos humanos às necessidades objetivas, aos problemas de formação e especialização, às condições técnicas e físicas para um bom desempenho, à legítima progressão nas carreiras e, finalmente, ao adequado estatuto remuneratório - não é um problema impar no seio da vasta e pesada estrutura técnica, social e humana como é o SNS.
Os enfermeiros reivindicam melhores condições profissionais, de ‘ambiente de trabalho’, de carreira e remuneratórias que é fácil a qualquer cidadão compreender. Mas esta asserção não chega para justificar uma situação altamente lesiva para o funcionamento do SNS, indiretamente para a  acessibilidade dos utentes e, dificilmente, uma greve deste modelo (seletivo) servirá para pressionar os poderes públicos a resolver os problemas que afetam este serviço público e que toda gente – em maior ou menor medida - conhece.
Ou não saberão os enfermeiros que se acaso o Ministério da Saúde resolvesse aceitar as reivindicações que foram colocadas em cima da mesa pelos sindicatos de enfermagem, ‘comprava’, de imediato, uma guerra com os restantes sectores profissionais que trabalham no SNS?.
Na realidade, começa a tornar-se nítido que a situação dos profissionais de saúde no Serviço Público de Saúde só será bem resolvida quando existir uma concertação – operacional, orgânica e reivindicativa - entre os diferentes sectores. Iniciativas sectoriais (como a dos enfermeiros) só poderão carrear para um serviço público de marcada importância social, um conjunto de tricas, recalcamentos e de mal disfarçadas ambições de protagonismo absolutamente nefastas para o sistema.
Na verdade - e apesar da absoluta necessidade do trabalho em equipa – tornou-se cada vez mais premente a imperiosidade de definir competências e evitar sobreposições que originam todo o tipo de disputas. As indefinições de competências e responsabilidades inerentes, cada vez mais frequentes, chocam com autonomias das diferentes ‘classes profissionais’ que operam no sistema, lançando o caos organizativo no funcionamento e na resposta do serviço público de saúde.
E esta competição não se restringe à qualidade da resposta do SNS, atingindo a área social e sindical através de reivindicações que, sendo à partida justas, facilmente aparecem no contexto social como sendo autênticas ‘guerras púnicas’ (à volta de ‘dominações’ e 'hegemonias').
Existe muito de unilateralismo, para não dizer de egoísmo corporativista, nesta violenta jornada de protesto protagonizada pelos enfermeiros. Não pode ser o ‘chico-espertismo’ de chegar à frente ou, melhor mais cedo, que deve nortear as formas de luta dos enfermeiros, ou de outros sectores profissionais da área da saúde, mas sim outros objetivos mais nobres: organização, qualidade da resposta e satisfação profissional.
A existência de lutas de sectores profissionais, legitimamente protagonizadas por organizações sindicais, não pode ser – no sensível terreno onde se enquadram - dissociadas de um substrato fundamental: a defesa do SNS. Todavia, verifica-se que - neste campo político - as proclamações têm sido muito escassas, para não dizer inexistentes.
 As situações dos profissionais de saúde que trabalham no SNS e aí corporizam uma importantíssima resposta social – que não se confina aos enfermeiros - contem a uma miríade de problemas que, ultrapassando largamente as questões laborais, têm sido adiados e necessitam de ser resolvidos num quadro regulatório geral e institucional – a Lei de Bases da Saúde.
Um destes problemas, como todos sabemos, é o subfinanciamento crónico do SNS que malabarismos liberalizantes como ‘as taxas moderadoras’, os ‘congelamentos’ de carreiras e eventuais ‘cativações’, não conseguem resolver, nem esconder. As questões de fundo não dizem respeito exclusivamente aos enfermeiros como, igualmente, transcendem os médicos, os técnicos auxiliares de diagnóstico e terapêutica, os assistentes operacionais, os gestores, etc.. O SNS é um serviço público de âmbito universal e, portanto, envolvendo a globalidade dos cidadãos, tem um alcance geral e, politicamente, é uma área sensível da coesão nacional.
Mas existe, em termos de recursos humanos, uma outra evidência. Os serviços hospitalares, os cuidados primários e os continuados, i. e., todas as unidades operacionais afetas a uma resposta na área da saúde, devem trabalhar em equipa e os diferentes profissionais têm de manter uma relação de interdependência funcional transparente.
Ora, as quezílias e os remoques que se vão desenvolvendo à volta dos problemas que realmente existem vão necessariamente ‘desestruturar’ as equipas e prejudicar as relações laborais futuras, a orgânicas dos serviços e o trabalho em grupo.
Para além da incontestável legalidade da greve, a eventual ilicitude de um modelo ‘self service’, como foi alertado pela PGR, na consulta que lhe foi solicitada pela Ministra da Saúde link, esboça-se no horizonte uma guerrilha entre profissionais de saúde de que é exemplo a denúncia pela Ordem dos Médicos de ‘piquetes de greve’ em ambientes reservados e necessariamente de acalmia link e as respetivas réplicas dos organismos corporativos (Ordem dos Enfermeiros) e mesmo de sindicatos link.
Este empolamento e o deslizar de confrontações vai, com certeza, e termos de futuro, prejudicar a qualidade da resposta do SNS.
Desconhecendo o teor dos acordos que os sindicatos fizeram com os Conselhos de Administração que visam complementar as decisões do tribunal arbitral (que estabeleceu serviços mínimos) afirmam os profissionais de enfermagem que esses ‘piquetes’ se destinam a verificar se os doentes a operar cumprem ou se integram no âmbito dos serviços mínimos. Trata-se de uma claríssima exorbitação de funções e competências.
Na verdade, não cabe à enfermagem fazer diagnósticos médicos, muito menos verificá-los (questioná-los) e o grau de prioridade cirúrgica (eletivo, urgente e emergente) é uma decisão eminentemente clinica. Por este andar da carruagem poderemos estar a ultrapassar uma ‘greve self service’ para um novo estadio: uma ‘greve ad libitum’.
Mais uma vez estamos colocados perante a urgente necessidade de definir as diferentes competências, estruturar a orgânica operacional do sistema, definir responsabilidades que – em última análise - diferenciam carreiras e remunerações, etc., tendo sempre como centralidade uma realidade que vem sendo esquecida: o(a) doente, enquanto natural utente e destinatário desta relevante prestação social. 
Na verdade, uma greve não pode centrar-se em meras questões de oportunidade e ignorar as restantes variáveis que integram o sistema. Chegar cedo para apanhar o melhor ‘quinhão’, sentar-se precipitadamente à mesa do banquete orçamental para tentar abocanhar a melhor fatia do bolo é mais um oportunismo do que outra coisa.
Ao navegarmos todos (os profissionais de saúde) no mesmo barco seria bom que divisássemos o mesmo horizonte e tivéssemos o mesmo rumo. 
Não são admissíveis pretensões como a que foi visível em alguns cartazes de manifestações de apoio à luta sindical dos enfermeiros: ‘Vamos parar o SNS’ ! (foto publicada no JN).
Será verdade que este propósito não se encaixa nas reivindicações sindicais publicamente expressas como motivações da greve. Mas não deixa de sugerir uma imagem conhecida: gato escondido com rabo de fora.
Os cidadãos não reconhecem autoridade, nem legitimidade, a um grupo profissional (qualquer que seja) para disferir um ataque tão fontal a um pilar fundamental da coesão social. Se existisse caminho para rapidamente perder a razão e o apoio dos cidadãos a mensagem exibida na foto é exemplo paradigmático.
E convenhamos que é muito difícil entender, nomeadamente na sensível área da saúde, uma ‘greve ad lib’ que, partindo de objectivos justos, i. e.,  lutando por melhores condições de trabalho e de remuneração, simultaneamente, acaba por colocar sob fogo, não o Governo em exercício de funções, mas um bem muito mais valioso e vasto: o SNS.

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