No estertor da ditadura – (Crónica)

Após 3652 dias de docência no ensino primário, incluindo quatro anos e quatro dias de tropa [26 meses na guerra colonial], e dois anos mais como vendedor de matérias primas e agente comercial, entrei para uma multinacional farmacêutica onde terminei a minha vida profissional de 44 anos.

Tinha 30 anos de idade nesse mês de abril de 1973, um mês integralmente passado em formação para as funções a que concorrera na multinacional suíça. Eram pesados os horários e vasta a matéria a aprender, mas generoso o tempo destinado aos almoços. Ter cumprido o serviço militar obrigatório era condição necessária para a admissão na Empresa, tendo todos os candidatos passado por um dos teatros da guerra que a ditadura nos impôs.

A maioria tinha percebido que a guerra estava perdida, e era com todo o à-vontade que, perante os poucos indecisos, condenávamos a obstinação criminosa da ditadura.

Alterávamos com frequência o sítio de almoço e num dos dias fomos ao restaurante que ficava ao cimo do Parque Eduardo VII. Ao sairmos, deparei com dois rapazes de vinte e poucos anos e logo reconheci o Augusto, filho do Ti António Palos Ferreira, da Miuzela do Coa, terra dos meus avós maternos, onde passei férias até entrar na vida profissional.

Foi com enorme prazer que o encontrei e abracei. Como passas, Augusto, os teus pais, e o Fernando, andam bem – perguntei –, andam sim, sr. Carlos, a diferença de tratamento era natural numa aldeia onde alguns anos mais e o estatuto de quem andava a estudar e era de gente menos pobre faziam o hábito.

- Então o que faz o teu irmão Fernando? - É subchefe da PSP, na Guiné. Ó Augusto então não arranjou melhor, bem sei que a PSP não é tão má como a Pide, mas não deixa de ser polícia, manda-lhe um abraço meu e, pressionado, pela espera dos colegas que me aguardavam para entrar no carro que me levaria de regresso, estendi-lhe a mão e despedi-me com votos de o encontrar de novo.

Não voltei a pensar naquele encontro casual com o conterrâneo e amigo, acompanhado de outro jovem.

Alguns meses depois do 25 de Abril voltei à Miuzela, de onde guardo felizes memórias da juventude e a saudade dos mais doces avós que couberam ao primeiro e mais desejado neto.

Nesse ano ainda conhecia e era conhecido por quase todos os adultos da aldeia. Entrei, como de costume, em numerosas casas e visitei imensos amigos, a resistir ao presunto, ao queijo e aos copos de vinho com que todos gostavam de receber.

A surpresa estava-me reservada na forja do Ti António Palos Ferreiro, desconhecendo ainda hoje se Ferreiro era também, além de ofício, o apelido. Morava a vinte metros da casa do meu tio-avô António Álvaro e a cerca cinquenta da dos meus avós. A casa dele era por cima da forja, e era ali que se encontrava a malhar o ferro em brasa.

Fui recebido com enorme satisfação e era mister perguntar-lhe pela mulher e filhos. Disse-me que o Fernando estava em Lisboa e que o Augusto estava preso…, “era dos malandros”.

Senti um arrepio. Lembrei-me do encontro no Parque Eduardo VII, do constrangimento com que me apertou a mão à despedida, que só então percebi, bem diferente da efusão do abraço inicial com que correspondeu ao meu. Por momentos, temi que o 25 de Abril fosse ainda um sonho, com as pernas a tremer, como sucedera tantas vezes antes de Abril.

O Augusto era agente da Pide.

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