Reflexão avulsa (de fim-de-ano) …


Aproveitar o fim do ano de 2018 para fazer uma curta – e sempre incompleta – reflexão sobre uma correlação entre a corrupção e o advento dos ‘populismos’ pode ser considerado uma ‘liturgia’ mas, acima de tudo, trata-se de uma necessidade, mesmo se acabamos por repisar conceitos e ideias 'com barbas' (à 'Pai Natal').

A primeira constatação é que o Mundo está cada vez mais desigual e criou um ‘legião de deserdados’ (descamisados, oprimidos, explorados, etc.) que não conseguem ver a luz ao fundo do túnel estando, por esse motivo, permeáveis a todo o tipo de doutrinas ‘populistas’ que tendem a dispensar modelos representativos, para se centrarem em chefes ditatoriais e despóticos.

A segunda questão diz respeito à oportunidade do momento. Nas vésperas da tomada de posse de Jair Bolsonaro, como presidente do Brasil, algumas reflexões sobre populismo e corrupção vêm à tona e fazem todo o sentido.

Voltemos aos primórdios da questão. Os excluídos, isto é, os cidadãos que o anátema da pobreza marginalizou, social e economicamente, deixaram de acreditar em soluções políticas estereotipadas (tradicionais) que vêm sendo ensaiadas institucionalmente numa alternância de exercício do poder que não interfere com os mecanismos essenciais subjacentes. 

O ‘desespero’ e a ausência de futuro atiram muitos cidadãos – pelo Mundo fora - para o regaço de uma catrefada de ‘populismos emergentes’, distintos na sua génese, mas idênticos nos seus métodos e finalidades. Hoje, é comum observar-se o trânsito abrupto de muitos cidadãos, desinseridos da esquemática e ortodoxa estruturação social (isto é ‘marginalizados’), de formações, agremiações e partidos conotados com a Esquerda para os braços de organizações, movimentos e formações de Extrema-Direita, cuja matriz fascizante é ineludível. Trata-se de um passo em falso com dramáticas consequências.

As ilusões que a Extrema-Direita vende (no ‘mercado eleitoral’) à volta de um nacionalismo serôdio, bacoco e chauvinista que lhe conferiria um ‘grau de supremacia’ capaz de resistir às perturbações económicas e sociais decorrentes das convulsões mundiais inerentes à globalização - e ao sistema capitalista que em última análise as suportam – não passam disso, isto é, de meras ilusões, que a realidade não demorará a desmascarar, como num passado recente tivemos oportunidade de verificar cá e por essa Europa fora.

Na verdade, a Direita manifesta-se contra as ‘elites mundiais’ (transnacionais) que o neoliberalismo tem vindo a criar, contrapondo a emergência de ‘elites nacionais’ que, no concreto, em nada diferem dos grandes lóbis internacionais, a não ser no seu circunspecto âmbito paroquial e na reduzida escala. Não é de admirar, portanto,  que o próximo presidente do Brasil, apareça sob a capa de um exacerbado nacionalismo, a proclamar um Brasil ‘primeiro e forte’. Faz parte da ‘liturgia’ da Extrema-Direita, serve para tentar consolidar o sistema (capitalista), quando varrido por crises, como é o caso.

Na realidade, a Extrema-Direita é um braço da Direita (aparentemente civilizada e moderada) para fazer o ‘trabalho sujo’ quando se agudizam as crises do capitalismo que ciclicamente se instalam, fruto das suas contradições. Apresenta-se como ‘iliberal’ quando na verdade, é visceralmente anti-social. Por essa razão, elege o socialismo (seja de que matiz for) como o inimigo figadal e a sociedade como estrutura de coesão a desmembrar para se impor. Esta é em traços largos a caminhada de Bolsonaro com a agravante de nada termos aprendido com a História. 
O relativo ‘pudor’ da Extrema-Direita contra o ‘capitalismo selvagem’ que arrebanha muita gente é isso mesmo, não passa de uma reserva mental muito fluida e transitória e a sua natureza é puramente substitutiva, para não dizer paliativa. De facto, uma das grandes preocupações da Extrema-Direita é condicionar a sociedade aprofundando uma estratificação elitista (do tipo das ‘castas’ que justificaram no passado ‘servidões’) e a partir daí subverter a organização social, controlando-a à custa da limitação das liberdades, a de expressão à cabeça.

Estas posturas entroncam-se nas posições que adotam sobre as migrações e na atitude sobre as discriminações (racistas, sexistas, etc.). A xenofobia, denominador comum de todas as variantes políticas de Extrema-Direita é um dos afloramentos (não o único) do chauvinismo que lhe está subjacente. Deste chauvinismo eminentemente xenófobo, que cultiva o ódio às minorias, até ao desembocar na discriminação rácica e de género (com diversos gradientes), vai um pequeno passo.
A expansão do reconhecimento das minorias (sociais, sexuais e económicas), conquista civilizacional que decorre de um contínuo processo evolutivo das sociedades - por vezes fraturante - é, hoje, um desiderato cultural (civilizacional), exacerba os ocultos e incontrolados ódios dos extremistas.
 
Na realidade, os extremistas de Direita não reconhecem a sociedade, preferindo quedarem-se pelos ‘indivíduos’ (alguns) e, deste modo, são promotores de um clamoroso retrocesso. São a expressão viva da reação.

As contradições da ‘onda neoliberal’ - que vare o Mundo - encerram no seu seio os gérmenes da violência. Os neofascistas rejeitam a ‘modernização neoliberal’ que, não tomando em conta as pessoas (endeusam prioritariamente os ‘mercados’), criam contradições sociais a vários níveis, conduzindo à violência e a exclusões, inqualificáveis. O que a Extrema-Direita propõe é a ‘normalização social’ que, não sendo natural, nem justa, só é conseguida à força, um pouco ao estilo da paz dos cemitérios.  É neste caminho que o brasil vai entrar a partir de 1 de Janeiro.

Os socialistas – que encaram prioritariamente o contexto multifacetado de sociedade têm como objetivo o bem-estar geral e a igualdade social - estão entalados neste processo e continuam a perder influência política porque, até aqui, têm tentado (aceitado) gerir os ‘malefícios e despautérios do neoliberalismo’ abdicando de uma doutrina económica e social, eixo fundamental da sua centenária ideologia.

No que diz respeito à dita ‘classe média’ cujas oscilações têm sido (eleitoralmente) decisivas para definir – na época contemporânea - os destinos de muitos povos, são paradigmáticos exemplos os recentes e gritantes casos da eleição de Donald Trump nos EUA e, a seu reboque, de Jair Bolsonaro, no Brasil.
A velha Europa não está imune a estas mudanças e, hoje, são também reais os paulatinos deslizamentos para soluções idênticas (Roménia, Itália, Polónia, Ucrânia, etc.) onde as soluções são benevolamente apelidadas de ‘populistas’, mas que pouco diferem das que, na primeira metade do séc. XX, foram referenciadas como fascistas e cujas consequências conhecemos.
A Extrema-Direita elegeu como alvo os efeitos perversos da globalização como se esses não fossem consequência direta do sistema capitalista.
 
A ‘classe média’ está espartilhada (e logo, vulnerável) por um modelo de desenvolvimento que a mantem sem auferir melhores condições de vida desde há, pelo menos, 10 anos. Tal não seria grave se, por acaso, o sistema tivesse investido os recursos acumulados no combate à pobreza.
Na realidade, o que se assistiu foi que os mais ricos se tornaram ainda mais ricos e um grupo cada vez mais alargado de desfavorecidos, que não vislumbram qualquer melhoria nas condições básicas de vida (educação, habitação, vestuário e alimentação) e viram a sua situação, pura e simplesmente, agravar-se.

A corrupção que a globalização banalizou como sendo uma ‘prática gestionária corrente’, sob a capa de obscuros e desenfreados processos de competitividade e produtividade, tornou-se a linha mestra de toda a contestação política no presente (ver recentes manifestações dos ‘coletes amarelos’), passando à margem dos sistemas políticos, partidários e dos movimentos sindicais.

Um ‘beato moralismo’ de condenação da corrupção, facilmente aceite pela população, tende a contornar as suas causas próximas e remotas. Em Portugal, não existe uma Direita com matriz ideológica clara e definida, capaz de mostrar-se como na verdade é – xenófoba, racista, nacionalista, rancorosa e violenta - mas acima de tudo, o que campeiam são grupos de predadores do Orçamento de Estado, disfarçados de ‘empreendedores’ e ‘investidores’, mas na maioria ‘rentistas’.
Destaca-se da banal corrupção para entrar em esquemas sistémicos e dá um passo em frente  passando a tentar a 'captura do Estado'. O que se passou cá com a PT, a REN e a EDP vai acontecer, no Brasil de Bolsonaro, com a Petrobras. Não tenhamos dúvidas.

Os efeitos deletérios provocados pelas práticas corruptivas, consideradas no seu alargado aspeto, perante a sociedade, são subtraídos à análise pública e frequentemente escondidos na sua real dimensão, porque são encobertos ou substituídos por novas designações. Há o risco de confusão entre um corrupto e um excelso (impoluto?) ‘empreendedor’.

Na realidade, a corrupção determina – direta ou indiretamente – que largos sectores populacionais tenham aviltantes carências. O que caracteriza a pobreza são exatamente essas carências: alimentação (fome), doenças (baixa esperança de vida), acessibilidade ao saneamento básico (água potável, eletricidade e tratamento de resíduos), desemprego, emigração, sem-abrigo, etc.).
A Esquerda não pode titubear no combate à corrupção e deixar espaço para que, neste terreno, a Direita seja capaz de dispor de terreno aberto para movimentar-se e explorar demagogicamente o crime. Existe uma diferença fundamental que necessita de ser aprofundada.
A Direita tende a diminuir, ou a eliminar, as instituições democráticas endeusando o caudilhismo e obstaculizando a transparência de processos e suprimindo o controlo cidadão (as eleições passarão a ser um simulacro).

A corrupção uma vez praticada e adquiridos ilicitamente os bens corruptíveis, transforma-se – nos regimes neofascistas - numa ‘apropriação natural’, protagonizada pelos mais ‘aptos’ e que – através de mecanismos repressivos concomitantes - não conhecerá a luz do dia. E Extrema-Direita não está empenhada em combater a corrupção mas em camuflá-la pelo silêncio. Nos regimes fascistas a corrupção existe mas é escondida.

A Esquerda deverá – para ser coerente com a sua matriz ideológica - revitalizar todos os mecanismos de controlo democrático, a começar pela liberdade de expressão, passando pela celeridade da justiça e acabando no exemplo pessoal (praxis). Deixar a corrupção exclusivamente para ser tratada nas instâncias judiciárias poderá ser fatal. Existe a necessidade de discuti-la na praça pública com regras e malgrado o tão enxovalhado ‘segredo de justiça’.
A corrupção não é exclusivamente uma questão de (mau) comportamento individual, portanto, do domínio da ética pessoal, mas está intimamente correlacionado com o sistema vigente (capitalista). Daí a perigosidade com que a Direita vê a discussão pública dos distúrbios corruptivos, cada vez mais banais e frequentes.

O crime corruptivo (quer seja ativo ou passivo) não deve poder continuar a ser compensador para o prevaricador, como hoje - em múltiplas circunstâncias - transparece ser. Não podem existir ‘liberalidades’, nem hesitações, nem contemplações neste combate sendo necessário vasculhar as causas profundas e ir ao âmago do problema. Salvaguardando os direitos individuais o mecanismo de resposta às práticas corruptivas deve ser muito mais rigoroso, eficiente e expedito.

A corrupção tem de ser encarada como uma atividade essencialmente ‘anti-social’. Cabe, portanto, aos ‘socialistas’ (entendidos ideologicamente na sua diversificada capacidade de fazer política social) estarem na linha da frente no seu combate, já que se trata de um problema eminentemente coletivo. Mas, na verdade, é todo o sistema (capitalista) que deve ser equacionado, questionado e confrontado (na sua lógica, métodos e consequências).
A corrupção é sempre uma apropriação fraudulenta de um bem colectivo, ou de interesse público, em benefício pessoal ou de grupo e, obviamente, com incontornável prejuízo da ‘coisa pública’. Trata-se de um ilegítimo ‘desvio’ de bens públicos, isto é, de uma apropriação indevida.

Dentro desse reequacionar há obviamente necessidade de repensar e revisitar dois eixos fundamentais que têm informado a doutrina política socialista desde o século XVIII : a ‘liberalidade’ dos mercados (ditos ‘livres’) e o contexto económico e social (conflituoso/antagónico/contraditório) dos regimes vigentes de propriedade (pessoal, privada e coletiva).

Não há volta a dar-lhe. O próximo ano não trazendo nada de novo em relação às dramáticas experiências passadas, dificilmente será um BOM ANO.

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