Revisitando o trajecto constitucional e a nova Lei de Bases da Saúde...


Dois assuntos dominam a agenda política nacional no ano de 2019. São eles a nova Lei de Bases do SNS e as alterações à Legislação Laboral.
Estes assuntos vão decisivamente influenciar a ‘qualidade’ da democracia portuguesa, isto é, projetar-se no seu futuro (imediato e a médio prazo), um pouco á margem – mas não totalmente - de um outro acontecimento relevante – os múltiplos atos eleitorais que ocorrerão em 2019.
 
As alterações a Lei Laboral são fundamentalmente acertos no Código de Trabalho e constituem uma matéria muito específica de regime, já que introduzem mudanças na relação capital/força de trabalho e, ainda, nos direitos e deveres dos trabalhadores, que não cabem nesta abordagem e merecem uma abordagem própria.
 
A Lei de Bases da Saúde sendo uma das traves-mestras do sistema de prestações sociais que formatam o denominado Estado Social, levanta vários problemas, como por exemplo, a complexidade de meios a afetar a este serviço público de saúde (financeiros, humanos, técnicos e de investimento) e ao mesmo tempo balizar orçamentalmente os seus contornos que, finalmente, condicionam as ‘soluções’ (políticas) a adotar. É sobre este terreno onde está instalado o SNS, que vamos tecer algumas considerações.
 
Na realidade, observa-se, hoje, no sector, uma forte apetência de protagonismo e de ‘negócio’, vinda dos prestadores privados. Esta apetência tem vindo a condicionar todas as discussões públicas que o assunto requer. Mas os apetites não se confinam ao sector privado e o sector dito social também tem metido a sua colherada.
 
Existem, para análise, vários projetos de lei de bases, o mais precoce protagonizado em conjunto pelo Dr. António Arnaut e Dr. João Semedo (“Salvar o SNS”, Ed. Porto Editora, Fev 2018) e, mais recentemente, outros dois documentos trouxeram novas visões e outras achegas, o relatório da comissão coordenada Drª. Maria de Belém Roseira link e a proposta do Governo link publicamente apresentada pela Ministra da Saúde, Drª. Marta Temido.
 
As diferenças entre estes dois projetos, aparentemente subtis, são, na realidade, profundas. O anteprojeto coordenado pela Drª. Maria de Belém Roseira – que mereceu a pública preferência do Presidente da República – é, para encurtar razões, uma solução ‘à medida do bloco central’ (de interesses). Salvaguarda incontestavelmente os interesses do sector privado e social num putativo ‘mercado de saúde’ muito difícil de conciliar com o espirito e a letra do texto constitucional. 
Existem outros projetos de génese partidária já apresentados (por exemplo o PCP - link ),  ou anunciados (PSD - link que refletem as visões ideológicas distintas sobre o SNS o que, em princípio, é salutar para o debate democrático.
 
Por outro lado, o CDS/PP link vagueia desnorteado e para não ficar isolado anuncia um projeto que apresentará no parlamento com a perspetiva de que o sistema seja entendido “em rede”, juntando o sector público, social e privado (por esta ordem…). Entretanto tece envergonhados elogios ao projeto coordenado por Maria de Belém. Trata-se de uma posição que não merece grandes considerações dada a sua evidente distonia com o texto constitucional mas, ao menos, é coerente, vinda de um partido que votou contra a criação do SNS.
 
Fundamentalmente, o que está no cerne da nova Lei de Bases e, portanto, em discussão, será o cumprimento dos pressupostos constitucionais sobre o ‘direito à saúde’. O artº. 64 da Constituição da República Portuguesa (CRP), aprovado em 1976, é explícito sobre este assunto embora, ao longo do tempo e à pala de revisões, tenha permitido vários entorses na sua aplicação prática, em nome de uma eficiência na resposta e na contenção dos custos, que está por demonstrar ,embora sejam esgrimidas de modo diferente pelas formações partidárias.
 
Contudo, é verdade que o artº. 64 da CRP que não permaneceu indemne em relação à redação inicial (1976), e ao longo dos anos (das revisões constitucionais), tem vindo a sofrer várias alterações.
Fundamentalmente, essas alterações foram pasmadas nas diferentes Leis de Bases da Saúde que ocorreram em diferentes ciclos políticos e têm um indelével marca destes.
 
A evolução das Leis de Base da Saúde, embora seja pertinente no atual momento, não dispensa o revisitar do acidentado percurso constitucional desde 1976 até á última revisão (Agosto 2005). Paralelamente, deverá correlacionar-se estas alterações com a evolução da arquitetura parlamentar, em termos de maiorias, e constatar que a ‘filosofia do centrão’ pontificou.
 
Será importante avaliar o âmbito das alterações constitucionais que foram sendo introduzidas para melhor entender percurso do SNS e compreender as propostas que os diversos partidos e o Governo (PS) apresentam na presente revisão da Lei de Bases.
 
Na realidade, as alterações ocorridas na revisão constitucional de 1982 introduziram o conceito de ‘gestão descentralizada e participada do SNS’ que, adiante-se, nunca foi levada à prática. A criação de ARS não correspondeu a uma efetiva descentralização e esse órgão de âmbito regional tornou-se, tão-somente, uma estrutura intermédia administrativa pejada de funções burocratizantes.
A participação das autarquias, dos utentes, das associações humanitárias e, mais alargadamente, da ‘sociedade civil’ nunca foi desejada, desenvolvida, nem em algum momento chegou a funcionar.
Por outro lado, ao nível da participação dos trabalhadores da saúde verifica-se que, p. exº., a eleição das direções cínicas ou de enfermagem que integrassem com legitimidade representativa os seus sectores nos Conselhos de Administração, só esporadicamente funcionaram e num ápice foram revertidas.
 De facto, essa ‘disposição participativa’ introduzida em 1996 seria eliminada em 2002, invocando a ‘necessária coesão’ dos órgãos de gestão das diversas unidades de saúde do SNS, mas na realidade é subsidiária de um conceito de ‘empresarialização’ que foi lançado pelo então ministro Luís Filipe Pereira (Hospitais SA) e continuado por Correia de Campos (Hospitais EPE).
 A coesão das administrações implicava que os membros das administrações tivessem a mesma ‘legitimidade’, ao que supõe democrática, e, portanto, sendo o presidente e o administrador-delegado nomeados pelo Ministro, não faria sentido (empresarial) existirem na mesma estrutura (de gestão, entenda-se) outros elementos (diretores clínicos e enfermeiros diretores) eleitos pelos pares.
Seria, numa 'perspetiva empresarial', introduzir ‘cavalos de Tróia’ no seio dos Conselhos de Administração já que os membros eleitos teriam tendência para defenderem critérios em que valorizariam a ‘qualidade da resposta’ e os meios em prejuízo de questões meramente orçamentais que tem ‘justificado’ a prossecução de um subfinanciamento crónico e o alijar das culpas para os (baixos?) níveis de produção e o desempenho dos profissionais da saúde.
E, a partir de certo momento, começaram a aparecer, vindas dos responsáveis ministeriais, as sombras de incontroláveis ‘desperdícios’, aleatoriamente quantificados em cerca de 30%, que ainda hoje estamos à espera de demonstração (cabal e quantitativa).
 
Na realidade, este pequeno incidente de percurso foi a antecâmara de desenvolvimento de  conceitos de ‘empresalização do SNS’, com o cortejo de situações daí decorrentes tidas como ‘contratualizações’, entre elas – as Parcerias Público Privadas (PPP).
 
Na revisão de 1989 houve uma mutação que determinou várias consequências. Passou-se do ‘gratuito’ para o ‘tendencialmente gratuito’. Esta alteração veio a chocar lateralmente com a universalidade do serviço público e latu sensu com o direito constitucional à proteção da saúde, já que introduz perturbações na acessibilidade do universo de utentes que, a partir desse momento, ficaram irremediavelmente sujeitas a condicionalismos económicos estratificados pelas diferentes classes sociais.
 
O exemplo das taxas moderadoras e concomitantemente os condicionamentos nos apoios à mobilidade dos utentes (transportes) e outros condicionamentos que foram impostos durante o XIX governo constitucional, isto é, durante a vigência da Troika, são relevantes, porque introduziram perturbações na acessibilidade e devem ser estudados.
Mesmo antes da intervenção externa no País, isto é, por volta de 2006, já o então ministro Correia de Campos lançou os ingredientes para uma desencadear polémica quando sugeriu um pagamento dos cuidados de saúde pelos utentes (… de acordo como o nível de rendimentos) como um meio de ‘travar’ o crescimento das despesas com a saúde.
Nesta ‘visão’, que não fez caminho, não existiu o pejo de sugerir os copagamentos – uma leitura constitucional enviesada do ‘tendencialmente gratuito’ - que viriam a fazer um tímido caminho através das taxas moderadoras que, na prática, não moderaram nada do pretendido (‘disciplinar’ o acesso), mas tiveram a função de abrir as portas do SNS a novas iniquidades.
 
Na realidade o artº. 64 da CRP cuja última alteração data de 1997 (não viria a sofrer alterações nas revisões de 2001, 2004 e 2005) continua com preceitos que se assemelham aos oráculos de Delfos, como por exemplo, a sua alínea d):
Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas de medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e qualidade”.
Difícil de entender este arrazoado no contexto de um serviço público equitativo, universal e tendencialmente gratuito.
Na ‘articulação’ entre formas empresariais e privadas de medicina com o SNS será o busílis da questão. Quando se fala em articulação pressupõe-se que existem dois sistemas em paralelo: um público e outro ‘público-privado’.
 
Na verdade, a Lei de Bases deve, dentro de preceitos constitucionais, contemplar a eficiência e qualidade do sistema público, 'tout court'.
O recurso a serviços complementares fornecidos pelo sistema privado (e acrescentaria o social) deve ser excecional e isso mesmo: ‘complementar’.
Isto é, regulado por esquemas de contratualização como serviços avulsos, pontuais e transitórios e de curta duração (até que o serviço público esteja capacitado para responder cabalmente às necessidades não cobertas) e cuja qualidade da resposta deve ficar estabelecida e salvaguardada aquando da elaboração de todos e cada um desses contractos.
Daí que surjam propostas tão díspares que vão da do PSD (ainda não formalmente apresentada mas anunciada link) que privilegia as PPP, às (constitucionalmente) mais ortodoxas do PCP, BE e até a do Governo PS que de algum modo rejeitam - categoricamente ou veladamente - a prossecução dessa ‘promiscuidade’ num serviço público com características de universalidade.
 
No texto do Governo existe um tímido recusar das PPP, e evidencia-se o ‘tímido’, porque se enveredou por uma posição salomónica, rejeitando a separação cabal das águas (público/privada), usando o termo ‘princípio da colaboração’ (Base 15 do projeto governamental) como adequado para designar situações de necessidade que correspondam uma resposta de complementaridade que, em boa verdade, deverão ser encaradas como supletivas, transitórias e efémeras, isto é, resolvidas a preceito e com prontidão.
Não será a mesma coisa, nem haverá interesse para o País (particularmente para a Esquerda) em deixar, no texto do diploma, persistirem situações dúbias e/ou indefinidas.
 
É visível que existe uma proximidade política entre as posições do PCP e do BE e a proposta governamental e que independentemente das posições próprias dos partidos existe terreno comum para lavrar.
 
Essa proximidade política e a eventual concertação de um projecto de Lei de Bases da Sáude que elimine os alçapões vindos do tempo do cavaquismo (Lei 48/90 link ) e da sua cirúrgica actualização no período barrosista, Lei 27/2002, link que ‘introduziu’ em anexo um regime jurídico para a gestão hospitalar escancarando o SNS às PPP, vai ser o bombo de festa da comunicação social nos próximos tempos.
Esperemos que, apesar do previsível ruído, a caravana passe…

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