Em defesa da coincineração
Há 20 anos, depois de exaustivos trabalhos científicos que demonstravam que a melhor forma de proceder à eliminação térmica dos resíduos sólidos era então a coincineração, os partidos que previamente tinham prometido aceitar o parecer técnico de cientistas nomeados pelas universidades, desencadearam uma luta política contra o Governo.
Eram poucos, mas ruidosos os contestatários, e grandes os constrangimentos socais à defesa da posição contrária, em Coimbra. Orgulho-me de ter publicado o texto que se segue, ao arrepio de todas as posições públicas e publicadas, no auge da contestação, que começou há 20 anos, contra a coincineração na cimenteira de Souselas.
"Somos um país com precários hábitos de higiene, heroicas tradições de resistência ao banho e uma irreprimível saudade do gosto ancestral de cuspir no chão.
Quem não guarda a memória do aconchego que o estrume do rés-do-chão, habitado pelos animais, trazia à casa da sua aldeia, nas noites frias de inverno?
Compreende-se, pois, a relação afetiva com os lixos em geral e os resíduos tóxicos em particular.
Os lixos que ornamentam a orla das estradas, os resíduos que pontuam os cursos de água, os odores que orientam os invisuais pelos difíceis caminhos das raras florestas que ainda resistem, têm encontrado sempre defensores. Desde a mais vetusta universidade à mais remota aldeia, do mais ilustre catedrático ao mais ignaro analfabeto, do mais progressista ao mais reacionário.
Os lixos são parte integrante do ecossistema nacional. Mimetizados com a paisagem, têm um carácter estruturante do nosso habitat. Fazem parte do nosso património cultural e idiossincrásico. São, em suma, uma referência coletiva e patrimonial.
Sem eles como poderiam proliferar os incestos e roedores que enriquecem a biodiversidade?
Graças à vigilância e defesa permanente deste património em franco desenvolvimento, podemos acalentar o legítimo anseio de nos transformarmos no santuário mundial para algumas espécies de moscas raríssimas e interessantes roedores que correriam o risco de extinção, bem como de novas espécies geneticamente apuradas por virtude dos resíduos tóxicos.
A coincineração seria aceitável se se destinasse a corrigir erros, a castigar hereges relapsos ou a defender verdades da fé. Aproveitá-la para eliminar resíduos tóxicos, com o risco acrescido de gerar mais valias para as cimenteiras, nunca.
Bem-haja quem se opõe com a força da fé às razões da ciência, com a fúria da cólera à sensata explicação dos benefícios, com a estridência dos gritos à serena reflexão.
Os lixos do nosso contentamento podem ficar tranquilos. Os seus defensores não dormem. São prosélitos que lhes asseguram a proliferação, garantem a tranquilidade e os defendem de qualquer insidioso ataque.
Os ambientes sépticos são ótimos para fazerem a seleção natural dos mais fortes.
Mal tem andado o Governo que, em vez de distribuir subsídios para a conservação dos lixos, negoceia apoios para a sua eliminação.
Daqui a 10 ou 15 legislaturas, 20 ou 30 Governos, 40 ou 50 comissões científicas independentes, podemos ter a certeza de que os únicos resíduos serão os nossos netos, com órgãos respiratórios adaptados a consumir os gases exóticos que vierem a compor a atmosfera."
Junho, 2000 – Texto publicado no Diário As Beiras (Ortografia atualizada)
Eram poucos, mas ruidosos os contestatários, e grandes os constrangimentos socais à defesa da posição contrária, em Coimbra. Orgulho-me de ter publicado o texto que se segue, ao arrepio de todas as posições públicas e publicadas, no auge da contestação, que começou há 20 anos, contra a coincineração na cimenteira de Souselas.
"Somos um país com precários hábitos de higiene, heroicas tradições de resistência ao banho e uma irreprimível saudade do gosto ancestral de cuspir no chão.
Quem não guarda a memória do aconchego que o estrume do rés-do-chão, habitado pelos animais, trazia à casa da sua aldeia, nas noites frias de inverno?
Compreende-se, pois, a relação afetiva com os lixos em geral e os resíduos tóxicos em particular.
Os lixos que ornamentam a orla das estradas, os resíduos que pontuam os cursos de água, os odores que orientam os invisuais pelos difíceis caminhos das raras florestas que ainda resistem, têm encontrado sempre defensores. Desde a mais vetusta universidade à mais remota aldeia, do mais ilustre catedrático ao mais ignaro analfabeto, do mais progressista ao mais reacionário.
Os lixos são parte integrante do ecossistema nacional. Mimetizados com a paisagem, têm um carácter estruturante do nosso habitat. Fazem parte do nosso património cultural e idiossincrásico. São, em suma, uma referência coletiva e patrimonial.
Sem eles como poderiam proliferar os incestos e roedores que enriquecem a biodiversidade?
Graças à vigilância e defesa permanente deste património em franco desenvolvimento, podemos acalentar o legítimo anseio de nos transformarmos no santuário mundial para algumas espécies de moscas raríssimas e interessantes roedores que correriam o risco de extinção, bem como de novas espécies geneticamente apuradas por virtude dos resíduos tóxicos.
A coincineração seria aceitável se se destinasse a corrigir erros, a castigar hereges relapsos ou a defender verdades da fé. Aproveitá-la para eliminar resíduos tóxicos, com o risco acrescido de gerar mais valias para as cimenteiras, nunca.
Bem-haja quem se opõe com a força da fé às razões da ciência, com a fúria da cólera à sensata explicação dos benefícios, com a estridência dos gritos à serena reflexão.
Os lixos do nosso contentamento podem ficar tranquilos. Os seus defensores não dormem. São prosélitos que lhes asseguram a proliferação, garantem a tranquilidade e os defendem de qualquer insidioso ataque.
Os ambientes sépticos são ótimos para fazerem a seleção natural dos mais fortes.
Mal tem andado o Governo que, em vez de distribuir subsídios para a conservação dos lixos, negoceia apoios para a sua eliminação.
Daqui a 10 ou 15 legislaturas, 20 ou 30 Governos, 40 ou 50 comissões científicas independentes, podemos ter a certeza de que os únicos resíduos serão os nossos netos, com órgãos respiratórios adaptados a consumir os gases exóticos que vierem a compor a atmosfera."
Junho, 2000 – Texto publicado no Diário As Beiras (Ortografia atualizada)
Comentários