As cidades são como as pessoas
As cidades são como as pessoas, com identidade própria, feições definidas, dimensões adequadas e sinais particulares. A nossa cidade, a cidade de cada um de nós, habita o imaginário que se cola à memória e nos acompanha nas ausências. É difícil viver sem ela ou, pior, viver nela assistindo à erosão da sua fisionomia.
Envelhecemos com a cor desbotada dos prédios, com as ruínas
que avançam, quarteirão após quarteirão, com as pequenas casas que ruem para
dar lugar a prédios de muitos andares, sem vizinhos, meros anónimos separados
por cimento armado na geometria vazia de afetos.
Há nas cidades a progressiva perda de identidade que as
grandes superfícies, primeiro, e a crise, depois, vieram avivar. Num dia
encerra a livraria cujo livreiro conhecia o nosso nome e gostos; no outro, o
restaurante do bairro onde, à chegada, o empregado gritava o nome do nosso
prato favorito; antes fechara a mercearia e, logo a seguir, a retrosaria, para
remodelação, com a certeza de que não reabrirá.
O betão invadiu os espaços onde os garotos jogavam à bola e
o das hortas abandonadas onde a vegetação selvagem brotou antes do ronco das
máquinas que o terraplanaram.
A barbearia encerrou quando a idade e o reumático afastaram
o barbeiro. A loja de ferragens, onde os empregados decifravam as necessidades
dos clientes e vendiam de tudo, exibe o letreiro numa casa com a pintura a
desfazer-se e o telhado a apodrecer.
A loja de hortaliças e fruta, da rua seguinte, surge fechada,
e, no passeio, sente-se a falta da banca onde os legumes mostravam frescura e
os frutos as cores. Do dono, atencioso e simpático, consta que se lhe formou a
filha e regressou à terra de origem. Trespassa-se.
Todos os dias, a nossa cidade vai morrendo com cada pequeno
negócio que lhe moldava a identidade. Com ela, sinto que também eu vou
desaparecendo por entre espaços dantes cheios de vida e agora mausoléus da
memória.
O aldeão que ainda vive dentro de mim, sabe que o rio da sua
aldeia secou, que os fogos lhe destruíram a paisagem, os arbustos tomaram conta
das hortas, para arderem de novo no ano seguinte e tornarem irreconhecíveis os
sítios onde foi menino. Talvez por isso se resignou à cidade que lhe têm
roubando e agora descaracterizam, com árvores que viu crescer a serem cortadas com
a fúria de um edil arboricida que pretende deixar o nome ligado a um autocarro
a que chama “metro de superfície”, como se os carris imaginários tivessem de
sacrificar as árvores.
Por cada árvore que se corta é o ar que fica mais irrespirável
e por cada família roubada à rotina da vida há o espaço abandonado aos acasos
da marginalidade e a ruga que rasga a face da cidade que era nossa.
É a vida.
Coimbra, 22 de novembro de 2022
Ponte Europa / Sorumbático
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