José Saramago – 100 anos
O grande ficcionista português foi o escritor que se reinventou em cada livro que trouxe ao banquete da literatura. O jornalista robusteceu a escrita na crónica e tornou-se ímpar na arte de contar, na forma como moldou a língua e na argúcia com que abordou o outro lado da nossa História nas mais belas páginas da literatura.
A obra de José Saramago, traduzida em mais de quarenta idiomas,
continua a percorrer o mundo, e a inspirar criadores de várias áreas, da música
ao teatro e ao cinema, numa apoteose que honra a língua portuguesa e mantém
vivo o pensador comprometido com a vida, os assalariados e as mulheres, estas
as heroínas maiores da sua vasta obra.
Quando foi anunciado o Nobel, recebi o telefonema de um
colega amigo a transmitir-me a notícia e a dizer que a minha convicção se
tornara realidade. Há anos que esperava ver o nome de Saramago entre os
laureados do prémio maior da literatura, como esse amigo sabia. Acabava de acontecer.
Foi com um grito de júbilo que gritei a notícia no bar do
Hospital de Leiria, onde me encontrava, e fiquei estupefacto com o
desconhecimento generalizado do escritor e a indiferença perante o galardão. Há
paladares rudimentares que a Universidade não ajuda a requintar, e as iguarias
são para quem sabe apreciá-las.
Mais de vinte e quatro anos volvidos, Saramago já não
precisa de panegiristas, merece apenas ser lido com a sedução que inspira, o
prazer que transmite em cada página e na descoberta da riqueza da língua
portuguesa trabalhada pelo notável criador.
Ao indizível prazer da leitura do gigante literário que é
Saramago junta-se o deleite pelo azedume que provocou o seu êxito e a
animosidade de que ainda é alvo o escritor ateu.
L'Osservatore Romano, diário do Vaticano, escreveu quando
B16 era Papa: “Saramago é, ideologicamente, um comunista inveterado” e, depois
da morte, ainda lhe chamou “populista extremista” e “ideólogo antirreligioso”,
epítetos azedos de um reacionário.
O eurodeputado do PSD, Mário David, nascido em Angola, e a
viver há décadas fora de Portugal, declarou, após a atribuição do Nobel, que
tinha vergonha de ser compatriota do escritor e que este devia renunciar à
nacionalidade portuguesa.
O Dr. Manuel Clemente, ex-bispo do Porto, ora patriarca de
Lisboa, afirmou então que José Saramago “revela uma ingenuidade confrangedora
quando faz incursões bíblicas” e, como “exigência intelectual, deveria
informar-se antes de escrever”, como se alguém o coagisse a ele, bispo, a
pensar antes de falar ou a calar-se quando o silêncio é crime.
Saramago teve a sorte de viver numa época, como admitiu, em
que não havia fogueiras da Inquisição, e Portugal a de gerar o escritor cujas
posições políticas, do foro pessoal, foram compatíveis com a sua talentosa
criatividade literária e geraram um património universal de raiz portuguesa.
Até no funeral, a ausência do PR, Cavaco Silva, que tinha
prometido levar os netos a passear, fez o contraste entre a grandeza do defunto,
que continuará vivo, e a pequenez do ausente que ainda debita ódio e ressentimento,
e permanece morto para a cultura.
O prémio Nobel não foi para Saramago o fim de uma tardia e
profícua carreira, foi uma fase na vida de um dos mais fecundos e inovadores
escritores de sempre, que honrou as palavras e as ideias e trabalhou com elas
até ao fim.
De Camões e Gil Vicente, passando por António Vieira e
Aquilino, Saramago destacou-se na plêiade de escritores do século XX e mostrou
que a liberdade conquistada com o 25 de Abril trouxe consigo a criatividade e o
talento.
A língua portuguesa deve-lhe a riqueza da sua imaginação e
sabedoria, e os portugueses o orgulho de o terem como referência estética e
cultural, esquecidos já da mediocridade de um Governo de Cavaco, em que figuras
menores como Santana Lopes e Sousa Lara, vetaram para concurso a um prémio
europeu uma das suas obras emblemáticas – O Evangelho segundo Jesus Cristo.
Com Saramago foi um país Levantado do Chão que aprendeu
história e fez a Viagem a Portugal. O escritor a quem o Vaticano, irritado com
o Nobel, chamou inveterado ateu, foi um exemplo de dedicação ao trabalho
literário, que lhe consumiu as últimas forças.
José Saramago ficou na História como um dos mais notáveis
escritores portugueses de sempre e que refletiu o mundo empenhadamente sem
perder a matriz do livre-pensador.
Apostila – "Doze livros de José Saramago estão entre os
classificados com os mais altos níveis de interdição do Opus Dei a nível
internacional, num Index que envolve 79 obras de autores portugueses, incluindo
Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Vergílio Ferreira, Miguel Torga, Lídia Jorge
e David Mourão-Ferreira. Esta foi uma das revelações de um extenso trabalho de
reportagem feito pelo jornalista Rui Pedro Antunes e publicado no dia 28 de
janeiro de 2013 no Diário de Notícias".
Desenho: Onofre Varela.
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