Crianças com quem brinquei (Crónica)

Recordo, seis décadas depois, os garotos que me acompanharam na escola primária, crianças que a vida flagelou, filhos de mães que pariam todos os anos e de pais que se emborrachavam todos os dias.

Vinham de Cairrão, do Carapito e da quinta do Ordonho, descalços e com uma côdea de pão duro. Aprendiam a ler e a escrever, decoravam os rios e as serras de Portugal, as descobertas, batalhas e outras glórias do país que lhes negava uma sopa quente e um copo de leite. Passavam o dia numa escola onde chovia, com o soalho apodrecido pela humidade e o tecto a ameaçar ruir. O vento, a chuva e a neve entravam pelos buracos das janelas onde faltavam vidros cuja substituição não cabia no orçamento da Câmara da Guarda.

A Primavera e o Outono aliviavam os corpos da dureza do clima. A chuva não fazia grande mossa, era pouca a roupa e o corpo conhecia dias piores.

Os miúdos aprendiam os cognomes dos reis e os nomes dos filhos bastardos, conheciam o esqueleto humano até ao último osso e saíam da escola a escrever sem erros e, muitos, com distinção no exame da 4.ª classe. Os do Ordonho, quando eram curtos os dias e longas as noites de Inverno, percorriam três quilómetros a ver o amanhecer, antes de chegarem à escola, às vezes com temperaturas negativas, e voltavam ao entardecer a repetir em voz alta as batalhas que os portugueses ganharam e os nomes dos navegadores que capitanearam as naus que acharam portos em vários continentes.

No mapa-múndi havia nomes de países apagados pela vara que os apontava; o mapa do corpo humano tinha órgãos em mau estado; o de Portugal e Ilhas Adjacentes exibia rios, afluentes, serras, cabos, baías e caminhos de ferro cujos nomes se decoravam com o rigor do credo e a devoção da salve-rainha.

Nenhum aluno era proposto a exame da 4.ª classe sem dividir e classificar as orações sem hesitação, qualificação académica facultativa para meninas a quem bastava, na opinião do governo salazarista, a 3.ª classe, porque tanto saber era exagerado para meninas humildes e comprometedor do destino da alma.

Os miúdos da minha escola nunca viajavam de comboio apesar de correrem sobre os carris da linha da Beira Alta e saberem de cor os nomes das terras onde paravam as carruagens que circulavam nas vias que os ingleses construíram desde o Estado da Índia até aos ramais que acompanhavam os afluentes do rio Douro.

Nos intervalos das aulas os rapazes corriam para a horta do senhor Gaspar e as raparigas para a do senhor Germano, ou vice-versa, já lá vão tantos anos, e a memória apenas guarda a parede junto à qual circulavam os meninos, colados, para não pisarem o grão de bico, o feijão de estaca e as alfaces, mas evitando trazer nos pés os excrementos próprios ou alheios.
Depois aproveitávamos o tempo que restava para jogar ao pião ou dar pontapés numa bola de trapos enquanto as meninas disputavam o terreiro a jogar à macaca.

Que será feito desses condiscípulos? Quantos viverão ainda? E que saudade é esta que agora me assalta quando a tradição festeja o nascimento do homem de quem os crentes desconhecem o ano e o local mas a quem a fé atribuiu dia certo e transformou em deus?

São as tradições a interferir no mundo dos afectos; é a saudade feita remorso das pessoas que deixámos sair da memória; é o tempo, receoso do futuro, a resgatar o passado. Por onde quer que andem, a minha memória trouxe-os agora de volta.

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

avoema disse…
Que descrição tão viva, tão real, tão genuína, cruelmente verdadeira, porque vivida de facto. E, no entanto, penso que essas crianças eram felizes. Neste momento, as nossas crianças vivem enjauladas, não lhes podemos proporcionar momentos de liberdade e de rebeldia:(Creches, colégios, janelas e varandas com grades). Ruas para os carros, jardins dão lugar a condomínios fechados, e a bairros sociais. Parabéns pela belíssima prosa e espero que encontre algumas dessas crianças, e de preferência, agora adultos coerentes e conscientes.
avoema:

Nessa altura, era essa escola que caiu num Inverno, onde por acaso não perdi a mãe e um irmão, que tinha grades.

Mágoas da ditadura, saudades das pessoas.

Obrigado pelo amável comentário.
LUIS FERNANDES disse…
Amigos, como leitor diário do vosso blogue, desejo-lhes um bom Natal e um melhor ano que aí vem.
Um grande abraço.
Luis Fernandes
(www.questoesnacionais.blogspot.com)
Essas e outras (tantas, tantas) são figuras que adornam o firmamento do nosso V Império, meu caro Esperança!
É perguntar a uns visionários que andam por aí, que eles explicam!
andrepereira disse…
Mais uma bela prosa, uma carinhosa e dura lição da verdadeira história do Portugal de Salazar, de um Portugal pobre, de miseráveis, coabitando com os luxos do bairro da Foz no Porto e as belezas de Cascais, mais a sul.
Um abraço. André
Apanhados disse…
Boas Festas e um Santo Natal!
Nuno:

Obrigado pelos votos, que retribuo, mas não sou muito dado à santidade.

Agradeço a intenção.

Mensagens populares deste blogue

Divagando sobre barretes e 'experiências'…

26 de agosto – efemérides