TARTAGLIA versus BERLUSCONI e a “desfascização imperfeita” italiana…

Alguns dias após a agressão física de que Sílvio Berlusconi foi vitima, é tempo de colocar interrogações sobre o regime democrático italiano e, talvez, ir mais longe, analisar os níveis de violência – não só física – vigentes nesta Europa, aparentemente civilizada, mas sob uma tensão política profunda.

O incidente da Piazza del Duomo é, à primeira vista, um acto solitário e subsdiário do desequilíbrio mental de um cidadão. Apesar da sua injustificável atitude, Massimo Tartaglia, continua a ser um cidadão e não um “terrorista”, como Umberto Bossi - a pensar em dividendos políticos - pretende.
Este acto de violência deve questionar-nos se a Itália do pós-guerra conseguiu, ou não, em toda a sua plenitude, exorcizar as sequelas do fascismo de Mussolini, como sucedeu, por exemplo, na Alemanha.

O quadro político e social italiano do pós-guerra é muito complexo dado terem surgido no terreno múltiplos protagonistas, sendo difícil sintetizar a sua evolução. Há, todavia, percursos explícitos, outros suspeitos que, neste momento, não podem deixar de ser analisados.

O fim da II Guerra Mundial tem como consequência a implantação da República e a hegemonia política de dois partidos políticos: a democracia-cristã italiana e o partido comunista.
A democracia-cristã nasce, essencialmente, da congregação de aristocracias políticas e económicas instaladas no Norte e implantadas no mundo industrial, doutrinariamente anti-comunistas e, fundamentalmente, de uma escandalosa dependência – a todos os níveis - do Vaticano.
Simultaneamente, a invasão aliada arrastou dos EUA para a Itália uma enorme influência da máfia, que ergueu o seu quartel-general na Sicília, paulatinamente, introduziu-se na liderança de sectores da democracia-cristã, capturando o Estado e dominando-o na sombra política e economicamente. Embora esta relação tenha evoluído num quadro de enorme discrição e secretismo, nunca tendo sido cabalmente comprovada nos órgãos judiciais.
Todavia, dominou o mundo dos negócios e influenciou determinantemente o político, controlando todos os “sub-mundos” daí emergentes.
Não tinha interesse, nem foi prioritário tratar da “desfascização”.
A sua prioridade imediata visível foi a eliminação física de homens conotados com a Esquerda e a descredibilização da Resistência a Mussolini.
O partido comunista sob o fogo da Igreja e com a conivência demo-cristã, nunca exerceu em plenitude o seu peso no campo político. Ficou confinado à área social e, aí, fora o fim das corporações - imagem de marca sócio-económica do Estado fascista, na prática, pouco mais conseguiu.
O PCI ficou prisioneiro da estratégia da democracia-cristã, de que o celebre “compromisso histórico” é um paradigma.

De fora ficaram as angústias e as fobias da chamada “classe média” que, indubitavelmente, foi o suporte humano onde Mussolini desenhou o seu trajecto populista de ascensão ao poder.

O pós-guerra italiano trouxe importantes modificações no quadro de regime, mas não se debruçou, nem procurou entender as causas e origens do fascismo. É este ambiente que proporciona o nascimento precoce, em Itália, de movimentos “neo-fascistas”.
Portanto, no pós-guerra, para além de uma emigração massiva, verifica-se um quadro de democratização imperfeita que, ao fim e ao cabo, permitiu a persistência de resquícios do fascismo.
Para dar um exemplo recente este imperfeito ajuste de contas com o passado basta olhar para Gianfranco Fini, líder da Aliança Nacional, uma das três forças integrantes das coligações governamentais de Berlusconi e actual presidente da Câmara dos Deputados italiana.

Fini, interrogado sobre se Berlusconi poderia ser comparado com Mussolini, respondeu: "Berlusconi deverá mostrar serviço para provar que pertence à história como Mussolini". E, como remate das suas convicções, acrescentou: "Dois homens idênticos não nascem no mesmo ano, nem no mesmo século". Finalmente, esclarece esta inconformidade política italiana numa Europa democrática, dos povos:
"A direita italiana não tem nada a ver com a francesa ou com a alemã, pelo simples fato de o fascismo ter sido um fenómeno basicamente italiano".
E que parece perdurar sob novas formas e aparências …
Berlusconi é pródigo em tecer comentários pouco apropriados, como os que recentemente fez em recentemente na reunião do PPE em Bona, onde afirmou: “O Parlamento faz leis, mas o ‘partido dos magistrados’ não gosta dessas leis e vai ao Tribunal Constitucional onde 11 dos 15 juízes são esquerdistas e anulam as leis”. Nitidamente, um político incompatibilizado com o Estado de Direito, nomeadamente com a separação de poderes.

De facto a sua riqueza pessoal é a base do seu poder político e tal facto determina a confusão, em público, entre comportamentos pessoal e público. E, Berlusconi não faz questão em distingui-los. Prefere rodear-se de lacaios e compinchas que o adulam e dão cobertura aos seus devaneios orgíacos.
O controlo que exerce sobre a Imprensa peça fundamental das suas sucessivas e intermitentes ascensões ao poder leva-o a tratar os meios de comunicação internacionais com arrogância.
O seu machismo é, nos dias actuais, intolerável. Recentemente ao discutir o estupro entendeu-o como “um produto natural da libido masculina”.
E, acrescentou, ufano:” para impedir o estupro, eu precisaria – na Itália - de ter um policial acompanhando cada mulher bonita”

Bem, rodeado de polícias, Berlusconi não conseguiu evitar que lhe estropiassem a face pelo que, neste momento, já terá compreendido que a violência – tanto contra as mulheres, como no que respeita aos políticos - não é tão fácil de controlar.

Muito menos, em tempos de crise, onde a exibição da riqueza, o tentacular controlo mediático da sociedade, a intensificação de uma corrupção sistémica, onde se misturam interesses públicos e privados, os malabarismos legislativos para conseguir a fuga à Justiça, a intolerável xenofobia … suscitam a mobilização política e social, bem como a indignação, contra as todas estas prepotências.

Este é o momento político italiano. O "caso Tartaglia" é um acidental epifenómeno - condenável é certo - que não espelha os profundos problemas da vida publica italiana.

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