AAP - Entrevista ao jornal TRIÂNGULO


a) Antes de mais, sinteticamente, que é a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) e quais os seus objectivos?

RE: A AAP é um conjunto de homens e mulheres organizados para melhor defenderem os interesses comuns aos ateus, cépticos, racionalistas e a todos os livres-pensadores, pessoas que não necessitam de deus por serem capazes de viver com normalidade, sem medo do Inferno ou angústia do Paraíso.
Somos pessoas que damos valor à nossa vida e à dos outros, que cultivamos a razão e confiamos no método científico para construir modelos da realidade. Não remetemos as questões do bem e do mal para seres incertos nem para a esperança de uma existência após a morte.

São objectivos da AAP combater o obscurantismo, defender a laicidade e mostrar o mérito do ateísmo enquanto premissa de uma filosofia ética e enquanto mundividência válida, sabendo que o ser humano é capaz de uma existência ética plena sem especular acerca do sobrenatural, e que todas as evidências indicam que nenhum deus é real.

b) Ser-se ateu é ser anti-religioso?

Os ateus não são necessariamente anti-religiosos apesar da sanha irracional das Igrejas contra o ateísmo. A AAP defende a liberdade religiosa como direito reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, declaração que os seus sócios prezam e subscrevem. Defendemos de igual modo o direito à crença, à descrença e à anti-crença.

Há, no entanto, uma diferença a estabelecer: um ateu não é contra os crentes mas contra as crenças que colidem com as normas morais que são apanágio da modernidade e da civilização. Os monoteísmos veneram um deus patriarcal e tribal que aceita a escravatura, a venda das filhas e outras coisas tão repugnantes como a morte de quem coma moluscos (Levítico 11:10) ou de quem trabalhe ao 7.º dia (Êxodo 31:15).
Vejamos mais alguns exemplos bíblicos: qual é o castigo para quem invoque o nome de Deus em vão? (Levítico 24:16); e o castigo para o adultério? (Levítico 20:10); e para a homossexualidade? (Levítico 18:22). O castigo é invariavelmente a morte, mas é lícito vender uma filha como escrava: (Êxodo 21:7) e possuir escravos, tanto homens como mulheres, desde que comprados em nações vizinhas (Levítico 25:44).

Um ateu é contra as determinações bárbaras e não contra quem acredita que satisfazem a vontade do seu deus. Felizmente, muitos crentes ignoram ou simplesmente desprezam esses livros pouco recomendáveis que o deus abraâmico inspirou.
Claro que combatemos o proselitismo e a violência sectária. Lembramos que a Igreja católica fez em 13 de Maio de 2008 a peregrinação a Fátima «contra o ateísmo» e, pouco depois, o patriarca Policarpo definiu o ateísmo como a «maior tragédia do nosso tempo», tragédia, pelos vistos, maior do que a fome, a guerra, as doenças e as catástrofes naturais.

c) Têm-se pronunciado sobre a religião católica, mas as criticas que fazem estendem-se a todas as correntes religiosas?

RE: Cada religião diz que é falso o deus de todas as outras e certamente com razão. Nós apenas negamos mais um, o que, no fundo, faz de todos nós ateus.

As críticas do ateísmo são comuns a todas as religiões. Criticamos o budismo cuja compaixão se estende às plantas e aos mais insignificantes animais mas não consegue conter as rivalidades entre os conventos nem impedir o obscurantismo, a tirania e a crueldade dos seus monges no Tibete. E a sua fé não é alheia ao subdesenvolvimento social e económico que oprime os países onde é praticada.
Criticamos os hindus que reclamam as liberdades individuais como apanágio da sua crença e se calam em relação à escravatura que ainda praticam dentro ou fora das castas, quanto à própria existência de castas e aos hábitos de opressão que persistem defendidos nos seus textos.

Mas criticamos sobretudo, pela proximidade, os três monoteísmos. O deus do Antigo Testamento, violento, vingativo, misógino e homofóbico, é comum às três religiões do livro. É o deus criado pelas sociedades patriarcais e tribais de há seis mil anos.

Hoje é o Islão que lidera a violência e a misoginia, que aterroriza para se impor, que considera grande o seu deus e Maomé o único profeta. O Islão é uma cópia grosseira do cristianismo, que não foi impregnado pela cultura helénica e não sofreu a influência do direito romano. É a religião que vigora principalmente no mundo árabe onde apoia uma civilização fracassada e ameaça a paz.
Mas não esquecemos o sionismo, lepra do judaísmo, nem o protestantismo evangélico, nem o catolicismo romano do Opus Dei, dos legionários de Cristo e dos recentemente reabilitados bispos e padres ordenados pelo bispo Lefebvre, anti-semitas, reaccionários e fascistas .

d) Encontram diferenças entre fé e religião, entre crença e igreja?

Claro que há diferenças entre fé/crença e religião/Igreja. A fé não nasce com as pessoas, é incutida no seio das famílias e das sociedades para preservarem os valores herdados e interesses instalados. A fé é sempre orientada para a religião dominante. Já a religião é um sistema de poder que precisa da obediência para sobreviver. Por isso as Igrejas usam a violência para se imporem e se, no Ocidente, se conformam hoje com a democracia é porque a repressão política as submeteu.

e) Qual o papel que deveria ter a religião na sociedade?

A religião deveria pertencer ao foro privado e deixar de impor os seus valores fora das comunidades de crentes, com absoluto respeito pela legislação dos países livres e pela autodeterminação religiosa dos seus fiéis. A apostasia só é crime para as Igrejas. Constitui, aliás, um direito inalienável de cidadania.

f) A ciência como instrumento de compreensão da sociedade não é ela em si mesmo uma fé?

Não. A ciência vive da dúvida e baseia-se em factos. Evolui à medida que novos dados são conhecidos e nunca consagra como verdadeira uma experiência que não possa ser repetida. Já a religião tem dificuldade em adaptar-se à modernidade e à civilização porque é atribuída a um deus que nunca falou mas que tem guardiões que zelam pela vontade que lhe atribuem.

g) Como justificam a atitude do Estado, aos diversos níveis, perante a Igreja? E como deveria ser de facto?

A atitude do Estado português tem sido de conivência com a Igreja católica deixando-a penetrar nos hospitais, prisões e Forças Armadas através de capelães que reconhece e remunera de acordo com a Concordata e a lei da liberdade religiosa feitas à medida da religião católica.

O Estado devia declarar-se incompetente em matéria religiosa e observar uma absoluta neutralidade em questões de fé. É, aliás, a isso que o obriga a Constituição da República Portuguesa. Falta, todavia, pudor republicano aos seus mais altos dignitários.

h) O facto de haver milhares de pessoas que dizem acreditar num Deus, não é em si mesmo sinal do fracasso da ciência?

Mesmo que acreditem não há diferença entre a maioria que hoje crê em Deus e a totalidade que acreditava que o Sol girava à volta da Terra. Não é por acaso que Lutero dizia: «Quem quiser ser cristão tem de arrancar os olhos à sua própria razão».

i) Sentem que ser-se ateu, nos dias de hoje, provoca algum constrangimento social?

Sinto que a negação de Deus é a mãe de todas as negações provocando um ódio fanático nos que não se contentam em cuidar da própria «alma» e querem igialmente obrigar os que não crêem a «salvar» a sua.
Como Bertrand Russell, estou tão firmemente convencido da nocividade das religiões como estou da sua falsidade. (in Porque não sou cristão – Brasília Editora – Porto).

* Entrevista concedida ao jornalista Carlos Cardoso

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