Passeando por Londres

Há mais de duas décadas, vagueava por uma avenida londrina e ia esquecendo os pobres “sem-abrigo” que, àquela hora, começavam a acomodar-se em vãos de lojas, abrigos de ocasião, alheios à luz intensa da iluminação pública e à circulação de turistas ávidos de percorrerem a cidade. Alguns ainda mastigavam umas bolachas antes de adormecerem, tendo como travesseira os parcos pertences.

Via-os ajeitar cartões e jornais, para se cobrirem, às vezes cobertores puídos pelo uso e sujos pelas poeiras e restos de comida que denunciavam a função de toalha em outros horários. A frequência da miséria amolece a vigilância cívica e embota a sensibilidade. Eram drogados, deficientes, marginais incapazes de se adaptarem ao trabalho e às regras da sociedade, pensava eu, enquanto contemplava a arquitetura da cidade e percorria com o olhar a silhueta do palácio de Westminster e do Big Bem ou observava as margens do Tamisa.

Num determinado momento, sob um manto de jornais e cartões, com umas luvas rotas, um sem-abrigo lia um livro. Estupefacto, procurei descobrir o escritor, sem ferir o leitor com a minha indiscrição. Não consegui ver o título, mas li claramente o nome do autor,  na capa – Charles Dickens –, e os olhos embaciaram-se-me.

Afastei-me, a conter a emoção, misturada com o remorso, de quem via nos seres que a vida privara de conforto e dignidade, marginais, drogados e deficientes. Ali estava um homem de meia idade que, antes de adormecer, lia Dickens, aproveitando a iluminação pública para encontrar na leitura o lenitivo da vida que lhe fugira.

Que estranho mecanismo me emocionou com aquele homem, porque lia Dickens, como podia ler Shakespeare, após passar alheado perante outros que pareciam contentar-se em não morrer? Aquele homem tinha a mesma barba em desalinho, o mesmo ar sofrido, o mesmo aspeto de abandono e resignação, mas segurava um livro que lia, distraído dos transeuntes que se arredavam para não o pisarem.

Penso que não foi compaixão que senti, foi medo, medo de vir a ser como ele, de estar num sítio assim, com o estômago vazio e, na mão, talvez Eça, quiçá Aquilino ou mesmo Saramago, com a noite aliviada na leitura que preenche o tempo e não garante amanhã.

Assalta-me esta situação pungente que, como tudo o que me flagela, faço por esquecer. E lembro-me dos filhos de todos nós, das crianças que brincaram felizes, dos jovens que viram o mundo a brilhar, exultaram com a saída da universidade, e nunca mais entraram na vida. Vivem ainda com os pais, trazem o diploma na memória e partilham da reforma de quem não lhes perguntou se queriam nascer, enquanto perdem os sonhos e a vontade.

Quem sabe se nesta brandura feita de solidão e paciência não nasce a raiva que abala os alicerces que restam de um mundo que se desmoronou, de uma sociedade que se rompeu, por um exército de abúlicos que, de repente, se descontrolam e explodem contra quem os excluiu e condenou à tristeza sem horizontes e às noites que passam sem vontade de acordar, com medo da madrugada de mais um dia.

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

e-pá! disse…
A dimensão do 'exército de excluídos' começa a ser - se nos circunscrevermos ao velho continente - verdadeiramente assustadora.
Esta gritante iniquidade agrega mais de 120 milhões de europeus e não pode deixar de questionar o modelo de desenvolvimento sobre o qual assenta a Europa e o seu futuro imediato.
Todavia, se tivermos em linha de conta que o risco acrescido de exclusão social incide sobre as crianças teremos a perfeita noção de que estamos sentados sobre um vulcão.
Particularmente, em Portugal que, no presente, vive uma situação económica e financeira devastadora começa a cozinhar-se um explosivo 'caldo de cultura' onde se mistura uma incontrolável espiral recessiva, falências de empresas em catadupa, famílias inteiras no desemprego, cortes brutais nos rendimentos das pessoas singulares(reformas, subida de impostos), fome endémica, etc.,
Nestes dias quando ouvimos as forças políticas discutirem o próximo orçamento de Estado percorre-nos a impressão de se em vez de um orçamento (sempre mais austero e recessivo que o anterior) não deveríamos abandonar os ciclópicos trabalhos de desmontar e combater as kafkianas armadilhas financeiras e dar especial atenção a uma solução (ocupação condigna) para este emergente exército de 'ventres ao sol' (expressão da crise 1383-85) que, vitima das mais abjectas humilhações humanas e ferido na sua dignidade, esgotou a capacidade (a possibilidade) para manter-se 'quieto'.
Não estará longe o dia em que a 'balbúrdia social' suicidária que nos tem envolvido, desgraçado e fracturado a sociedade, comece a alinhar prioridades e a movimentar-se.
Quando olhamos para a História sentimos que muitos povos europeus - e em particular os dos países presente sobre intervenção externa - o desafio major que a presente realidade (crise) coloca é a eminência de ajustes económicos e financeiros desembocarem numa violenta ruptura social.
E todas as rupturas sociais acabaram por romper com os equilíbrios fundamentais (locais, regionais, nacionais, continentais) degenerando em insanáveis e violentos conflitos de cariz eminentemente bélico, tremendamente mortíferos e globalmente destruidores.
Portanto, quando olhamos a rua e tentamos interpretá-la e senti-la, a presente discussão orçamental transforma-se num tosco exercício de ilusionismo que rapidamente poderá vir a ser trocado por um 'plano de batalha'.

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