«ERA UMA VEZ NA AMÉRICA» (1)
A morte como espectáculo político
Por Onofre Varela
«A morte de qualquer homem diminui-me, porque faço parte
da Humanidade […]. Nunca perguntes por quem os sinos dobram.
Eles dobram por ti»
(Meditações VII, de John Donne. 1572 – 1631)
Morrer é o trágico fim de todos nós. Quem nasce pode ter a certeza de que jamais sairá desta vida vivo!… A morte é sempre uma perda insubstituível para quem é próximo daquela pessoa que morreu, e a diversidade do pensamento é a moderadora de sensibilidades várias, fazendo com que a morte de algumas pessoas seja mais sentida e lamentada por uns, do que por outros.
Na nossa sociedade quem é bem formado não “comemora” a morte de ninguém. A pessoa que morre merece o silêncio respeitador de todos nós. Só depois merecerá as homenagens que a memória dos seus feitos suscita a quem os reconhece e quer enaltecer (ou, pelo contrário, merecerá a crítica de quem pensa ter motivos para o criticar).
Nem todos merecem homenagem. E quando ela acontece, também nem todos se aliam a ela… estou a lembrar-me de Hitler, Stalin, Pinochet… para citar alguns que já morreram e não merecem o meu apreço… mas também Putin, Netanyahu e Trump… que estão vivos e também não o merecem.
Todos estes, vivos ou mortos, embora merecedores da minha “má memória”, têm quem os adore como se fossem heróis, se não, mesmo, uma espécie aparentada a deuses!… Para além da bitola do “gosto político particular de cada um”, tais nomes irão figurar (alguns já figuram) numa lista que a História se encarregará de elaborar para poderem servir de exemplo, mau ou bom, de uma determinada época.
Entretanto, enquanto a História não tem o tempo necessário para, com distanciamento e Humanidade, poder catalogar a qualidade dos que morreram, há homenagens feitas no momento desse infausto acontecimento que é o desaparecimento de alguém… cuja morte pode não ter lugar na História futura de uma comunidade, mas que no tempo em que ocorre tem valor para os promotores da homenagem que lhe prestam.
Parece ter sido isto o que aconteceu com o assassínio do jovem político extremista da Direita norte-americana, Charlie Kirk. Ele foi honrado num recinto desportivo que se mostrou pequeno para albergar a multidão que acorreu à homenagem (o State Farm Stadium, com capacidade para 73.000 pessoas, tendo ao lado outro espaço, também lotado, com um ecrã gigante e 20.000 lugares sentados).
Contaram-se em muitas dezenas de milhar as pessoas que quiseram marcar presença na homenagem daquele amigo de Donald Trump assassinado dez dias antes (a 10 de Setembro), tendo sido honrado como “mártir da fé cristã”, nas palavras do vice-presidente dos EUA, J. D. Vance. E Donald Trump, por sua vez, referiu-o como um “evangelista da liberdade”!…
Esta do “evangelista” é a mais recente versão reaccionária do Cristianismo, conseguida na confusão do lema “A América Grande Outra Vez” (MAGA, na sigla da sua origem inglesa “Make, America, Great Again”) inventada por Trump como candidato ao lugar histórico de ditador dos EUA.
Nesta aproximação da América actual ao figurino das práticas religiosas islâmicas fundamentalistas, o Secretário de Estado Marco Rubio, chefe da diplomacia da primeira potência mundial integrada no pensamento ocidental, comparou (sem qualquer pudor) Charlie Kirk – que professava uma fé evangélica – a Jesus Cristo!…
Depois entrou em cena Trump para encerrar o espectáculo em apoteose, de acordo com a sua filosofia MAGA. Fez um comício enaltecendo o ideal “republicano-americano”, defendendo as comissões “caça-dinheiro” que impôs aos países que querem negociar com os EUA; atacou Joe Biden (o seu inimigo de estimação já neutralizado desde as eleições. É como bater num morto, mas Trump adora fazê-lo por saber que quem o ouve aplaude e ele adora aplausos); mais os imigrantes que quer ver expulsos do território; e mais a “esquerda radical” a quem culpa pelo assassinato de Kirk; e mais os meios de informação independentes por não dizerem o que ele quer que se diga (exactamente como Jesus Cristo manda, como se vê!)… e acabou em grande e em beleza, garantindo que nos seus oito meses de governação converteu os EUA no “país mais sexy do mundo”!…
A viúva de Kirk tomou parte do espectáculo debitando um discurso místico, perdoando ao “jovem que matou” o seu marido, porque foi o que Jesus fez na cruz, ao dizer “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. “Porque a resposta nunca é o ódio, mas sim o amor. Amor pelos nossos inimigos e por quem nos persegue”.
Seguiu-se um outro momento patriótico com a multidão a entoar a canção “América the Beautiful”, rematada com um discurso do conselheiro presidencial Stephen Miller, dizendo que os que estão contra o activista Kirk “não são conscientes do que despertaram. Vós acreditastes que pudestes matar Charlie Kirk? Só conseguistes torná-lo imortal… agora, milhões tomarão o seu lugar!” (à boa maneira dos discursos religiosos islâmicos fundamentalistas).
E mais disse, este jovem que parece não ter aprendido nada nas quatro décadas da sua vida. Tem 40 anos mas parece ter 400, pois os seus pensamentos navegam águas medievais. É o arquitecto da política de imigração de Trump, e disse esta coisa digna de um pergaminho medieval bolorento: “a morte de Charlie Kirk foi um sacrifício e uma bênção” que veio “salvar a civilização ocidental e reconduzir as pessoas para Deus”.
Depois apelou à derrota “das forças das trevas e do mal”, concluindo que “não podem parar-nos. Nós temos beleza, luz, virtude, força, determinação. Os nossos inimigos não percebem a nossa paixão. Nós construímos este mundo e vamos defendê-lo. Estamos do lado do bem, do lado de Deus”. A seguir, Jack Posobiec, comentador de extrema-Direita e apoiante fervoroso de Trump, na mesma senda de Miller, entrou em cena apelando “a uma guerra espiritual”!…
Se tudo isto não é uma súmula de discursos de loucos… então o que é?!…
Aquilo que seria o funeral de um activista político da extrema-Direita americana assassinado, foi transformado numa longa jornada “político-religiosa”, com Deus na boca e o Diabo no coração de todos os intervenientes, ao estilo das ameaças que os extremistas islâmicos lançam contra o ocidente, numa manifestação de hipotético poder intimidatório, mas, também, de extrema estupidez e indecência! As ameaças de Trump atingem todos os países do mundo que mantêm relações económicas com a América… e mais todos os outros que não as mantêm!
Os assistentes de tão degradante manifestação extremista em versão funerária, pareciam hipnotizados. Olhavam o céu com expressão beata e as palmas das mãos viradas para cima, ao estilo das preces islâmicas e das sessões de oração das seitas evangélicas, ao som do “Rock Cristão”, cantando “Amen”.
A receita incluía o destaque do “patriotismo”, da “fé em Deus Todo Poderoso” e a afirmação da “bondade do matrimónio” e da “sagrada procriação”, investindo contra a prática do aborto.
Arrazou-se a ideologia de Esquerda e proclamou-se a fé na premissa de que os Estados Unidos constituem “a nação maior e excepcional da história da humanidade”. Para o remate de tão espantosa colecção de disparates proferidos como se fossem coisas sérias e importantíssimas, atacou-se o estado actual da educação superior das universidades norte-americanas.
Para se enraizar na cabeça dos apoiantes da governação de Trump a “má qualidade” das universidades dos EUA, elas foram pintadas como “lugares para a doutrinação socialista” (e como se constata pela prática, o inimigo público universal não é Trump e os seus lacaios… mas sim os socialistas... que nos EUA não existem… tornaram-se residuais na década de 1970) para onde os pais nunca devem mandar os seus filhos, porque “quatro anos depois regressam mudados”… para melhor, diria eu… mas não!, é para pior, presumem eles.
Há que ter medo destas reacções demonstrativas da falta de inteligência e do abandono do pensamento próprio, demonstrado pelos cidadãos americanos que estavam naquele evento por fé, como se tivessem rumado ao santuário de Fátima.
Um povo assim instruído é capaz de protagonizar as piores barbaridades… basta dizer que o façam… e eles fazem… como fizeram no assalto ao Capitólio em 6 de Janeiro de 2021.
E tudo isto acontece na América!…
Podia parecer aos leitores mais distraídos que tal espectáculo funerário é ficção hollywoodesca ou que acontece no Afeganistão de religiosidade extremista e bárbara… mas não!
Isto teve lugar na América de hoje. Na América de Donald Trump.
Esta manifestação foi concebida com a precisão de uma produção televisiva para intoxicar mentes doentias, tal como por cá se vai vendo em canais de televisão que apresentam programas nocturnos com discursos de seitas ditas cristãs… mas se Jesus Cristo aparecesse por aí… corria todos esses bispos de aviário a pontapé e ao tabefe, como (consta) fez aos vendilhões no templo… tal como faria a Donald Trump e a toda a sua comandita de mafarricos desmiolados.
(Texto construído com base em noticiário inserido nos jornais El País (espanhol) e Público (português) de 22 de Setembro de 2025)
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