Do Diário Ateísta – Domingo – dia do Senhor (Ref.ª Público.pt/2005/01/09/Local Porto

Contra a abertura do comércio ao domingo, marchar, marchar...

O Movimento pelo Encerramento do Comércio ao Domingo, onde se destaca o pio Bagão Félix, de frouxa sensibilidade social e exacerbada devoção religiosa, consegue o apoio dos sindicatos e do patronato. Não me seduz a cassete neoliberal em voga, mas irrita-me a obstinação da ICAR a apropriar-se do domingo e atribuir-se outros dias que crismou de santos e equiparou a feriados nacionais.

Se o dogma é um insulto à inteligência, mas uma vitória para a fé; se agride a razão, mas purifica a alma; se fecha os caminhos difíceis da ciência, mas abre largas avenidas da salvação, é difícil haver quem o enjeite, mas a Câmara Municipal do Porto prepara-se para pecar. Parafraseando Eça, cabe à Vereação, moderadamente jejuada, razoavelmente confessada e melhor comungada, pronunciar-se piedosamente sobre o horário do comércio.

 O Governo privatizou as seguradoras e os bancos; condescendeu com a liberalização dos combustíveis e da energia; entregou aos privados as comunicações e os cimentos, mas chamou a si o horário das mercearias. Nos mares, nas estradas e nos ares circula a iniciativa privada, mas respeita-se, na compra do sabão amarelo, o horário das repartições. Não tem horário a gasolina, mas têm hora marcada a posta de pescada e o quilo de feijão carrapato.

Andou bem o Governo, há anos, em proibir às grandes superfícies a abertura de portas ao domingo. Preferiu a santa missa à venda dos legumes; dificultou a aquisição de frescos, mas facilitou a divulgação das homilias; alguns bacalhaus ficaram por vender, mas promoveu-se a eucaristia, com hóstias sem código de barras, nem prazo de validade, guardadas sem rede de frio nem inspeção sanitária. Folgam as caixas registadoras aos domingos, mas agitam-se as bandejas nas santas missas.

Contrariamente ao que era de esperar, não houve, porém, festa nas sacristias, não rejubilou o episcopado, não aconteceu um lausperene. Nem uma missa de ação de graças. Nem uma novena. Provavelmente algum padre-nosso rezado na clandestinidade ou uma ave-maria balbuciada por uma beata enquanto resistia à tentação da carne e ao assédio do marido. A própria Conferência Episcopal desistiu da pastoral da mercearia.

E vem agora a Câmara Municipal do Porto com um regulamento sobre horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais na cidade, capaz de os encher ao domingo, enquanto à luz mortiça das velas um padre boceja uma homilia para meia dúzia de resignados devotos.

 

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