A eutanásia e o terrorismo pio

Que a eutanásia é um assunto melindroso, que nos interpela até ao âmago, que nos leva a refletir sobre a vida e a morte, e nos levanta dúvidas e perplexidades, é uma evidência.

Que se discuta na base de uma campanha terrorista, com panfletos aterradores, a lançar insinuações sobre a possibilidade de os hospitais se transformarem em açougues, como se os médicos e enfermeiros fossem um bando de possíveis assassinos, é terrorismo que não tem pudor em praticar uma autodenominada “Federação Portuguesa pela Vida”.

A Bélgica admite a eutanásia a pacientes em “sofrimento físico e/ou psíquico constante, insuportável e sem alívio” e a Holanda permite-a “a doentes incuráveis e em sofrimento (a pedido do doente), condição que tem de ser atestada por mais de um médico”. Não se pode ignorar a experiência pioneira destes dois países, que já leva 14 anos.

A vida, sendo um direito inalienável, não pode ser uma condenação sem apelo. Ainda se ouvem os apelos aflitos de Ramón Sampedro, tetraplégico desde os 25 anos, que teve de esperar 30 anos para que uma amiga o apoiasse no suicídio. A Justiça absolveu-a, como se esperava, por ‘falta de provas’, como convinha numa Espanha católica e hipócrita.

O reconhecimento do direito à eutanásia não obriga a que alguém o aceite, mas impede que o proíba. Um direito individual é isso mesmo, uma decisão do próprio ou, estando incapaz, de quem o ame e tenha legitimidade para essa decisão, sob a responsabilidade de médicos quem possam e saibam avaliar o sofrimento e a irreversibilidade da causa.

A razão por que ninguém tem direito a impor a eutanásia, a quem quer que a não deseje, por maior que seja o sofrimento e a irreversibilidade da causa, é a mesma a que se deve submeter quem gostaria de a impedir a quem não suporte o sofrimento que o atormenta.

Os preconceitos não podem sobrepor-se à razão nem a alegada vontade divina à vontade humana. É um direito individual escolher quando morrer, se a vida se tornar intolerável, sem que alguém tenha o direito de impor aos outros a morte que lhe deseja.

Comentários

e-pá! disse…
A Eutanásia é um assunto muito sério. Não deverá ser, por esse motivo, mais um diploma a ser presente na Assembleia da República para discussão e votação, como por exemplo, a proposta do 'dia do cão'.
Certo que existe uma petição pública com cerca de 8000 assinaturas o suficiente para levar a questão a uma discussão se for aceite, pela comissão parlamentar, a sua admissibilidade.

Ontem, o bastonário da Ordem dos Médicos, acompanhado por 4 ex-bastonários, subscreveu um comunicado condenando a prática da eutanásia, o suicídio assistido e a distanásia.
Os esclarecimentos que prestam sobre estes temas vão do superficial ao categórico mas as explicações são poucas e a 'autoridade' da declaração publicitada dificilmente ultrapassa o domínio deontológico.

Trata-se, de facto, de um tema melindroso nos aspectos sociais, éticos e deontológicos que incorpora e por isso deve ser objecto de uma discussão serena, alargada e informada (que não foi feita).

Seria muito mau que importássemos para esta discussão o 'berreiro' que aconteceu com a interrupção voluntária da gravidez. E será ainda pior que venham a aparecer, sob os habituais disfarces, dogmas religiosos que coartem a discussão.
Para já, trocaria a petição pública por uma discussão pública.
Uma discussão que teste a capacidade da sociedade civil (no sentido gramsciano do termo) para o dirimir prévio das ditas 'questões fracturantes'.

Parafraseando um malogrado dirigente partidário apetece perguntar: Qual é a pressa?

Mensagens populares deste blogue

Divagando sobre barretes e 'experiências'…

26 de agosto – efemérides