Reflexões outonais sobre o Médio Oriente…

As batalhas pelo controlo de Alepo e de Mossul tem sido apresentadas como duas situações distintas ou separadas nos meios mediáticos mas, hoje, poucas dúvidas restam de que se trata do mesmo combate. A saber: a luta contra o Daesh.

Os problemas bélicos à volta destas duas situações apresentam, contudo, variações regionais e especificidades. São expressões regionais de conflitos que a dinâmica e o stress global (mundial) vai libertando, a conta-gotas, e que ninguém sabe onde começam e acabam. 
Vivemos estes tempos de insegurança há demasiado tempo e sem fim à vista. Mas essa óbvia fadiga não deve impedir uma reflexão sobre o andar da carruagem entre as diferentes estações e apeadeiros. Existe, por esse motivo, a nítida sensação que algo de importante se joga no Médio-Oriente.

Em Alepo – intramuros - existirá uma ‘coligação anti-Assad’ no contexto de uma ‘guerra civil’, heterogeneamente dominada por uma espúria convergência sunita que, quando submetida a uma análise mais cautelosa, vai dos rebeldes anti-regime (Exército de Libertação Sírio) até ao fundamentalismo jihadista do ISIL, passando pela Frente Al-Nusra, grupo Jabhat Ansar al-Din e outros. 
É difícil, senão impossível, destrinçar sensibilidades ou capacidades que sejam estranhas, ou fujam, ao controlo e à liderança do ‘califado’ já que neste contexto dominam os mais violentos. Trata-se de uma ‘aliança de conveniência’ cujo desfecho é muito previsível. De momento, estão mobilizadas para a ofensiva de libertação da cidade (e região) Alepo um conjunto de meios bélicos que vão das forças armadas sírias, milícias do Hezbollah, contingentes iranianos e o fundamental apoio aéreo, técnico e logístico russo. 
Todavia, Alepo não é – como tem sido defendido - controlada por forças de oposição a Assad mas será um dos feudos (desorganizados) de diversos jihadismos, onde o Daesh pontifica (apesar de episódicas escaramuças entre grupos). 
Alepo, é para o Daesh, em termos militares e estratégicos, a trincheira avançada de Raqqa (a ‘capital política’ do Daesh) cuja queda representará o desmoronamento do ‘califado’. Poderá estar a desenhar-se em relação a Raqqa uma reprise (de outras dimensões) da entrada, no final da II Guerra Mundial, das forças aliadas em Berlim.

Em Mossul, a ‘grande coligação libertadora’ é uma (insolúvel) mescla de forças empenhadas na libertação da cidade das garras do Daesh, à volta de razões e interesses díspares que vão desde disputas étnico-religiosas, à integridade territorial e ao domínio energético e, no plano político, serve de contraponto à batalha de Alepo. As ‘forças de libertação’ de Mossul incluem forças regulares iraquianas, organizações paramilitares sunitas e xiitas, curdos (peshmergas) que contam com o apoio aéreo e ‘conselheiros militares’ oriundos do ‘Ocidente’. Por apurar fica o contingente de mercenários e ‘forças especiais’ aparentemente de retaguarda. 
No contexto regional (excluídas ambições globais sempre presentes) ficam por resolver questões insolúveis: a relevância sunita, os apetites turcos e a questão curda. Uma mistura explosiva.

Alepo já conheceu vários períodos de ‘cessar-fogo’ e estas pausas no belicismo, num conflito caracterizado pela violência e devastação, nunca foram aproveitadas para (usando uma linguagem piedosa) transferir população civil deste ‘inferno’ para um outro ‘purgatório’ – os campos de refugiados. 
Em Mossul desde a entrada do ISIL nesta cidade, em 2014, desceu uma ‘cortina de silêncio’ e os caminhos de retirada da população civil nunca foram verdadeiramente abertos. Logo, quer em Alepo, quer em Mossul, a população residente está ‘aprisionada’ e a ser utilizada como escudo defensivo dos grupos beligerantes aí acantonados. 
Não se entende porque quanto a este assunto existem diversas bitolas classificativas e informativas. O que se aceita como inevitável em Mossul é crime contra a Humanidade em Alepo?

A caminhada de vitória na luta contra o califado está, no momento, a ser ensaiada em Mossul – para desvalorizar a campanha de Alepo - mas percebe-se que terá uma fase (batalha) derradeira: o assalto final a Raqqa. A questão é compreender como será possível este epílogo sem resolver a ‘guerra civil síria’ e, na passada, dispensar a participação do poder que (quando ocorrer o desfecho) estiver sediado em Damasco. 
É por isso - mas não só - que a ‘batalha de Alepo’ surge como sendo uma intervenção tão decisiva na complexa situação do Médio-Oriente. 

Bem, o que parece evidente é que as estratégias a desenvolver na política e no campo militar (no terreno), dentro da luta para derrotar o Daesh, têm (vários) custos incontornáveis para a ‘grande coligação ocidental’. 

Primeiro, tal desfecho não acontecerá sem (ou contra) Bashar El-Assad mas sempre ‘apesar de Assad’; 

Depois, surge a ‘questão curda’ que não deixará de fazer parte das partilhas pós-guerra, nomeadamente, na definição do ‘Iraque do futuro’, da nova Síria e, finalmente, da fronteira sul da Turquia (uma triangulação explosiva); 

Terceiro, o posicionamento da Turquia que, apesar de ser dúbio e inconsequente, continua a ser um elo importantíssimo para as soluções de Paz na região, dadas as suas relações com a NATO e a sua importância geo-estratégica. A crescente islamização do País recoloca os turcos na centralidade política da região e tornou-se claro que não haverá solução para o problema curdo sem a participação de Ankara;

Quarto, a Rússia que tem sido hostilizada pela NATO (quer pelo apoio a Assad quer pela questão ucraniana) desempenhará sempre um papel crucial em todo este puzzle do Médio Oriente. Esse tem sido o esforço desenvolvido quer pela diplomacia quer pelas forças armadas russas sob a batuta de Putin. Para além de ser um suporte do regime de Damasco tem na agenda de política externa uma série de questões que passando pela Turquia se estendem a toda a região e questionam a política externa europeia, enfraquecendo-a;

Quinto, na luta contra o Daesh há antecipadamente países que perdem influência e protagonismo na região. Quer por não terem estratégia própria e autónoma quer porque foram marginalizados das grandes definições de política energética global que ensombram os equilíbrios e determinam as ‘soluções’. O exemplo paradigmático desta situação é a União Europeia;

Sexto, os EUA, na verdade, o grande pivot da situação no Médio Oriente e o polícia mundial vai ter que dirimir um conjunto de contradições na sua política externa, começando pela Arábia Saudita, passando pelo Qatar, pelo Iémen e que vai desembocar na Palestina e Israel. Ateou um incêndio na bacia mediterrânica, à volta das ‘primaveras árabes’, que continua a lavrar descontroladamente e já atinge o Sahel. 

A instabilidade eleitoral nos EUA tem obscurecido – ou condicionado - a intervenção americana. Uma projectada (esperada) vitória de Hillary Clinton não clarificará a breve prazo a política externa americana para a Região (o desempenho de Hillary como Secretária de Estado de Obama deixou-nos essa ‘mensagem’). 
As tensões político-militares latentes por todo o lado poderão tornar a intervenção americana um percurso errático onde os poderosos interesses económicos e estratégicos, estarão em contraposição com evidentes debilidades (capacidades) financeiras para continuar a ‘comandar’ e ‘policiar’ o Mundo.

Os próximos tempos não serão de Paz. Esperemos ao menos que os guardiões dos equilíbrios políticos, militares e geoestratégicos, tenham inteligência suficiente para continuar a adiar a Guerra Global que um emaranhado de ocorrências bélicas regionais vem anunciando.

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