No albergue espanhol…

                                                
A chantagem que o PP está a fazer sobre o PSOE vai com certeza marcar o desenrolar político nos próximos tempos. Até aqui os socialistas eram ‘irresponsáveis’ porque não tendo tido a maioria, nem conseguido construi-la à Esquerda, obstaculizavam a posse de um governo (de Direita). Esta a narrativa que infestou a política espanhola.
 
Instalada a crise política no País que foi progressivamente abrangendo todo o sistema partidário o que está hoje em cima da mesa é muito mais profundo – o questionar do regime.
 
Mas foi no PSOE que esta perturbação institucional teve – no imediato – maiores e mais deletérios efeitos. A demissão do seu líder, Pedro Sanchez, o mais relevante obstáculo para travar os desejos do PP de continuar a controlar o regime, apesar dos resultados eleitorais não legitimarem essa pretensão, tudo parece voltar à estaca zero, ou se quisermos, a uma inquietante ‘normalidade’.
Todavia, este regresso a uma aparente estabilidade do sistema político só é possível à custa de malabarismos políticos. Os resultados das 2 eleições legislativas consecutivas serão torturados à exaustão pelas forças políticas.
 
Agora a Direita exige não só a abstenção do PSOE para constituir Governo mas, também, que este partido aprove os Orçamentos de Estado durante 2 anos (2017 e 2018) . Isto foi pedido publicamente pelo porta-voz do grupo parlamentar do PP, Rafael Hernando, link o que provocou um desmentido (parcial e lateral) de Rajoy link, assegurando que (só) precisa de um acordo sobre ‘sete ou oito assuntos’. Maior chantagem não podia haver.
Primeiro, trata-se de exigir o fim da oposição para governar ad hoc, sem rédeas e qualquer tipo de controlo;
depois, exige-se a aprovação ‘no escuro’ documentos cujo teor é desconhecido e com toda a probabilidade impossíveis de serem subscritos por qualquer formação partidária à Esquerda do espectro político.
 
O PSOE foi atirado para um beco sem saída. Tem consciência que uma 3ª. volta das eleições legislativas pode entregar de bandeja o governo a uma maioria PP/Ciudadanos que já se revelou disposta a colaborar. Ciudadanos que tão precipitadamente se rendeu a um idílico ‘pacto anticorrupção’ com o PP, à falta de divergências ideológicas, teve de engolir - há bem poucos dias - um provável e manobrado arquivamento do caso Gürtel que envolve a cúpula do actual PP link.
Mas o ‘pacto’, onde as ‘conveniências’ (interesses) são determinantes, deverá manter-se incólume.
 
O actual PP é cada vez mais uma reminiscência da velha Falange. Um partido ‘neo-falangista’ prisioneiro de interesses económicos e financeiros que alimentam casos de corrupção em catadupa e lutam – lado a lado com a Igreja – na recomposição (ou perpetuação) de uma mitológica ‘Grande Espanha’. A linha política dominante é nitidamente cada vez próxima do eixo Iribarne/Aznar e mais distante da mutação de abertura e adaptação às novas condições democráticas, protagonizada por Adolfo Suarez. Existe um regresso nostálgico a aquilo que o poeta modernista Antonio Machado definiu como a ‘exaltação de Castela’. Mantem-se agarrado a conceções unitaristas e musculadas do exercício do poder, misturou o arsenal ideológico do fascismo com o neoliberal, indo buscar sustentáculo e solidariedade na Europa dos ‘populares’ (PPE). Este retrógrado e anquilosado ‘programa’ político, com intenso odor a ‘liberalismo de sacristia’ tem contrariado a emergência pacífica e o desenvolvimento harmonioso de uma sociedade plurinacional, condição básica para a pacificação e desenvolvimento.
 
Regressando ao epicentro da presente devastação, isto é, ao PSOE, resta saber em que medida a intervenção das Federações Regionais, que passaram a conduzir os destinos do partido, após a renúncia de Pedro Sanchez, conseguirão – no imediato - conviver com a crise e resolver o imbróglio, sem provocar a destruição do partido.
 
Na verdade, criou-se uma situação ímpar de favorecimento para a Direita. Ou, a Direita aposta numas 3ªs eleições legislativas com o intuito de chegar a uma maioria absoluta (com ou sem o apoio de Ciudadanos) e enclausurar o PSOE num gueto ou, o facto de em alternativa poder vir formar de imediato um governo, débil e dependente de negociações parlamentares permanentes que se anteveem difíceis tenta que essa fraqueza não possa ser capitalizada pela Oposição que durante muito tempo vai estar prisioneira dos erros que foi cometendo. Como diz a sabedoria popular um ‘molho de brócolos’.
Joga-se aqui - mais uma vez – no terreno das velhas tácticas do conservadorismo. A eventual posse de um Governo liderado por Mariano Rajoy, o leitmotiv da convulsão socialista, será sempre uma solução transitória e, na prática, representa o adiamento da 3ª. volta das legislativas.
Num futuro, que se antevê próximo, a responsabilidade pela ingovernabilidade voltará a ser imputada ao PSOE (e a toda a Esquerda), transformando a solução agora encontrada numa arma de arremesso eleitoral.
 
No meio disto tudo estão os outros partidos espanhóis. A geografia eleitoral e partidária, neste momento, mostra à saciedade uma profunda factura com o passado recente (um regime que nasceu no pós-franquismo), baseado em 2 partidos charneira que esgotaram o seu papel, mas ninguém quer assumir a presente crise como sendo uma questão de regime. Existem poucas perspectivas de evolução do sistema actual para outras soluções sem passar por respostas federais ou confederais. Começa a ser visível e notório que, a breve trecho, existirá um grave conflito constitucional, decorrente da ‘questão catalã’ (mas que não deve ficar por aí). Não existe plano – e consenso nacional - para lidar com uma situação deste teor mas todos sabem que as consequências serão gravíssimas.
 
O Podemos que, em cada nova eleição, vai sofrendo a usura de um partido de protesto e uma acentuação dos problemas internos, resultantes de uma base ideológica muito fluida e pouco consistente. A indignada ‘raiva’ decorrente das iniquidades, da miséria, da falta de emprego, da fome, da exclusão económica e social, etc., problemas não resolvidos, tem um tempo para atingir o ‘clímax’ (que terá tido a maior expressão antes as primeiras eleições) mas vai sendo corroída pela demora, pelo postergar de respostas objectivas e ainda pelas naturais hesitações, acabando por sucumbir às contradições internas que qualquer ‘populismo’, seja de Esquerda ou de Direita, encerra.
Aliás, este ‘balancear’ é um dos maiores problemas das actuais convulsões. Os “indignados”, muitos deles oriundos da deficiente qualidade de resposta e do titubear ideológico do PSOE, uma vez desiludidos, não é previsível que regressem ao PSOE, ou a qualquer outro grupo de Esquerda. Este ‘balancear’ deverá corresponder e ter como consequência, em termos de futuro, um bandear de campo (ideológico).
 
O Ciudadanos, isto é, a Direita ‘renovada’ dos empreendedores, start up's, dos business consultors, dos promotores de brainstorms, dos apóstolos dos mercados, etc., foi a primeira formação partidária a aconchegar-se nos braços do PP (numa espécie de ‘filho pródigo’). A sua grande questão foi (já caíu) sanear Mariano Rajoy, num processo de discreto aggiornamento e de colagem a uma imagem ‘moderna’, para manter o neoliberalismo eleitoralmente mais vendável. Não conseguindo afastar a eminência parda, o filho dileto de Fraga Iribarne e o sucessor de Aznar, contenta-se com os resultados da operação de marketing e aceitará ficar com migalhas do poder em conformidade com os cânones distributivos conservadores.
É cada vez mais visível que existe, na emergente ‘questão espanhola’, um problema de fundo: o carácter plurinacional da Espanha que tem estado ausente da agenda partidária e, consequentemente, enviesado todas as respostas.
 
As nacionalidades e os povos mostram e ditam diferenças, especificidades e até distintos modelos de desenvolvimento que, no pós-franquismo imediato, foi possível salvaguardar pelo melindre social e inerente instabilidade orgânica (legitimidade) e que, o regime democrático pós-franquista, tem conseguido controlar (política e eleitoralmente). Todavia esta transição (40 anos) consumiu o espaço necessário para esconder ou dissipar clivagens autonómicas e fracturas sociais e económicas, que questionam a coesão nacional. Pelo contrário o advento da democracia e o exercício de liberdades fundamentais, acabou por revelar e consolidar as múltiplas ‘nações’, tornando-as politicamente determinantes em qualquer solução de futuro.
 
A ‘conceção unitária’, assente em atitudes musculadas e numa repressão sistemática que foi a linha de força nacionalista (caudilhesca) da ditadura, conduziu a uma transição democrática, onde a violência prosseguiu em nome, por um lado, de uma ‘velha Espanha’ (grande) e, por outro, na exacerbação de radicalismos separatistas e independentistas.
Esta situação atingiu o coração da antiga Espanha e cavou trincheiras, acentuou divisões e reivindicações, que só estarão resolvidas na cabeça dos ultraconservadores ou de incautos.
 
Carlos V (I de Espanha), Felipe II, os reis católicos e outros personagens ‘imperiais’ são gloriosas referências histórias do passado, perfeitamente datadas, sem qualquer ligação à realidade actual (nem mesmo considerado o quadro de uma União Europeia). Por outro lado, o caudilho já desapareceu da cena política há cerca de 40 anos.
O Mundo continuou a sua marcha e a Espanha de hoje, como de resto a maioria dos países, pouco tem a ver com as condições existentes na primeira metade do século XX, quando os nacionalismos fascistas tiveram o seu apogeu, com as consequências que todos conhecemos.
Na segunda metade do século deu-se a transição decorrente da senescência do franquismo, do desaparecimento física do seu mentor e agregador e foi concebida uma solução de compromisso que parece ter esgotado o prazo de validade.
Na Espanha do século XXI tudo se terá precipitado e agudizado pelo surgimento de crises atrás de crises (económicas, financeiras e sociais) que abalaram as conceções, regras e sistemas de um Mundo, dito Ocidental, subitamente, manietado nas suas contradições e incapacitado para – dentro de um quadro democrático - encontrar soluções políticas.
 
As mais recentes eleições (Galiza e País Basco) mostram como se tornaram frágeis, desadequadas, ou até obsoletas, as ‘respostas partidárias tradicionais’ perante uma imparável dinâmica de dissolução do ‘Estado Unitário’, consequência da afirmação de um País plurinacional.
 
Este o albergue espanhol que uma crise financeira prolongada, gerida com os pés e provocando a marginalização dos povos, está a alimentar. 

Comentários

Uma lúcida análise prejudicada pela dimensão do texto.

Será uma pena se os leitores do Ponte Europa desistirem de ler este texto para terem uma visão bem informada do problema político espanhol atual. É isto o que espera as esquerdas perante uma direita triunfalista que se furta ao julgamento dos tribunais (nos ilícitos penais) e conta com o eleitorado, cansado de votar à esquerda sem ver políticas de esquerda, assistindo à sua desintegração interna.

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