Crónica de Fim de Semana

A Escola do Magistério Primário da Guarda (EMPG) e o corpo docente

Quando em 1959 entrei naquele estabelecimento de ensino médio, logo consagrado com o epíteto de aluno-mestre, dei-me conta do regime concentracionário daquele antro onde a moral e os bons costumes eram defendidos da forma que seria designada por bullying, décadas depois. Em breve, o liceu pareceria um espaço de liberdade.

A docência e a decência eram ali inconciliáveis. O edifício ficava em frente da antiga prisão, poucos anos antes mudada para um imóvel na periferia da cidade. Eu recordava ainda os sacos de pano suspensos de um cordel, que ondulavam sobre o passeio, onde alguns transeuntes introduziam cigarros ou moedas que os presos recolhiam na cela.

Não sei se houve algum mimetismo a contaminar a EMPG e o seu diretor. Notavam-se algumas diferenças, desde o formato das grades ao aspeto dos carcereiros, talvez por mero acaso, mas respirava-se o medo e sentíamo-nos igualmente espiados.

Na indigência do corpo docente havia exceções. O professor de Higiene era um médico de rara delicadeza e simpatia, excelente comunicador e culto. A deficiência física, com anomalias graves do esqueleto que o obrigavam a conduzir um carro adaptado, não lhe contaminou o cérebro. Parecia deslocado, tal como a idónea professora de Desenho, calma e humana, ostracizada pelos colegas. Só mais tarde soube que a D. Fernanda era divorciada, nódoa indelével na EMPG, que fazia a síntese entre o cárcere e a sacristia.

Armando Saraiva de Melo era bom docente de Psicologia infantil, comparável aos já referidos, mas medíocre diretor e execrável cidadão, reacionário e déspota. Presidente da União Nacional no distrito da Guarda, imprimia um cunho ideológico à instituição e tornou-a um veículo de propaganda do regime.

Os outros professores, recrutados por convite, caíram no corpo docente como Pilatos no credo romano. Não eram recomendáveis. A Pedagogia fora entregue ao prof. Lourenço, um bom homem, temente a Deus e ao diretor, afeito à submissão do seminário e incapaz de ir além do compêndio. O ensino primário perdeu o bom professor e a EMPG ganhou um medíocre. Em Didática e Legislação Escolar o professor Vasco debitava os livros oficiais, desenvolto da parte da manhã, e titubeante depois do almoço. O de Educação Física, Crespo de Carvalho, usava as aulas para propaganda monárquica e salazarista e, se acaso sabia preparar professores para a educação física das crianças, não o chegámos a saber.

O padre Melo, que depois do 25 de Abril deixaria o múnus, lecionava a disciplina de Música e divertia-se a gozar os desafinados. O padre Queijo Cabral era o professor de Religião católica, disciplina obrigatória no currículo académico e na prática individual, cuja prova escrita tinha como pergunta sacramental: «as provas da existência de Deus», onde levei longe a dissimulação e o brilhantismo referindo-lhe as provas de Tomás de Aquino, um santo doutor da sua Igreja, estudado no 7.ºano do liceu na disciplina de Filosofia, cadeira que preparei, à margem do curso, para o exame liceal. Era obrigatória a cadeira de Religião Católica e não havia aulas de Português.

A missa da consagração do curso era obrigatória. Levei tão longe a dissimulação que, na missa, depois de o Ricardo ter avançado para segunda hóstia, o diretor não o tinha visto na primeira, acabei com o Tamagnini a estender a língua à rodela de pão ázimo que o padre distribuía a todos os finalistas.

A Escola do Magistério não era uma instituição estimável, já o disse e devo repeti-lo. O Diretor era, por inerência, chefe da secretaria e o 3.º oficial, Sr. Preto, de baixa estatura física e ética, era arrogante, grosseiro e vingativo. Julgava-se dono da loja e humilhava os alunos. Levei escondido um rolo de papel higiénico para pegar no diploma de curso que aguardei em longa fila, para lhe dizer que não queria sujar as mãos onde estiveram as dele, deixando-o aos gritos, dentro do balcão, enquanto virei costas ao antro.

Até os contínuos eram do piorio. Um era fortemente suspeito de ser informador da Pide e a D. Sofia a megera que palpava as pernas às alunas para apurar se levavam meias. As de vidro eram transparentes e obedeciam à pudicícia imposta, mas após o conhecimento de que uma aluna escarnecera as normas, imitando a costura, com um risco a lápis nas pernas desnudas, a D. Sofia encarregou-se de apalpar as pernas num espetáculo obsceno de humilhação e impudor, à entrada na Escola.

Foram dois anos penosos que terminaram com a fotografia de curso tirada no seminário, na companhia insólita do bispo, o reacionário Policarpo da Costa Vaz, e com a missa de consagração na igreja da Misericórdia, sempre sob a vigilância policial do diretor Melo.

A Escola era a caricatura do salazarismo. Dela, da indigência pedagógica e da repressão, ficaram os afetos entre colegas, sólidos e imperecíveis, de um tempo e lugar onde os afetos públicos eram vigiados e a aproximação do automóvel do diretor (EA-29-82) causava calafrios.

Comentários

clara disse…
Muito curioso este seu texto; curioso, porque esta mesma descrição experiencial eu poderia fazê-la, 6 anos mais tarde, referindo-me à Escola do Magistério de Portalegre. São estas e outras memórias semelhantes, que denunciadas, nos permitem compreender a razão de ser de alguns espíritos salazarentos que persistem e de tantas resistências à mudança. Por isso, Obrigada.
Cara colega Clara:

Diga-me se conheceu um primata chamado Manuel da Silva Mendes. Se assim for, tenho imenso gosto em enviar-lhe o link das crónicas em que o refiro. Era um déspota. Foi diretor escolar em Portalegre e Presidente da Câmara. Ameaçou demitir-me por motivos ideológicos nos anos de 1961/62 e 1962/63, obrigando-me a mudar de distrito.

O meu email: aesperancaenator@gmail.com
e-pá! disse…
CE:

Esta crónica fez-me lembrar o livro de Vergílio Ferreira: 'Manhã Submersa'.

De diferente o antro (dos crimes) que muda de um edifício em frente à prisão para um convento (em si mesmo um espaço concentracionário) e os docentes da EMPG, onde nem todos sendo padres, as piedosas incompetências pedagógicas com dislates de personalidade e de comportamento, acumulavam-se.
O que pouco, ou nada, difere são as vítimas. Isto é, 'os educandos' que sendo peça central da história caracterizam-se pela humildade.

Bem, acresce ainda a 'austera moralidade' dos dirigentes, grande parte das vezes entranhada de uma voluptuosa hipocrisia... muito ao estilo das salazarentas 'públicas virtudes, secretos vícios' ou, se quisermos, dos monásticos 'vícios privados, públicas virtudes'.

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