Marcelo e o ‘rei’ (que) vai nu…


A ‘entronização’ de Marcelo na Costa do Marfim (foto) levanta uma série de questões marginais que estão para além do gesto em si mesmo, bem típico da cultura tradicional africana, de obsequiar convidados e destacar ‘gente grande’.
Interessará em primeiro lugar determinar quais os interesses nacionais na ex-colónia francesa em África. Estes não serão cruciais para a nossa política externa, estarão bem longe disso, já que a prioridade parece bem evidente, isto é, será o aprofundamento da CPLP e não a África francófona.
A visita de Marcelo enquadra-se num périplo africano que se compreende em relação a Cabo Verde mas cuja extravasão ao continente africano deve ter algum fundo estratégico.
Costa do Marfim representa uma remanescência sobrenadante à volta de uma ‘saída colonial’ congregada numa obtusa ‘Africa francófona’, feita através de um regime paternalista, nascido sob os auspícios do ex-presidente Houphouët-Boigny e em consonância com outro celebrado dirigente africano - Leopold Senghor.

Houphouët-Boigny começa a sua carreira política ligado às doutrinas autonomistas africanas alimentadas pelo Partido Comunista Francês no Congresso de Bamako em 1946 (Rassemblement Democratique Africain – RDA) para depois de uma curta passagem pela Assembleia Nacional e por vários Executivos de França, romper com o PCF (sob a influência de Miterrand).
Mais tarde haveria de adotar posições de um  ‘anticomunismo primário’ que o levou – já presidente da Costa do Marfim - a cortar relações com a ex-URSS, em 1969, e a apoiar indiretamente alterações substantivas na Africa Equatorial que levaram à queda de Nhrumah no Gana, bem como intrometer-se no Benim (1977) e no Burkina-Faso (1987). Isto é, Houphouët-Boigny  foi um fautor de desestabilização regional que seria ultrapassado (modificada) pelo fim da guerra fria e, logo a seguir, pelo seu desaparecimento físico.

Depois de uma guerra civil de curta duração (2002-4) e de uma segunda edição em 2011, no rescaldo de eleições presidenciais, a atual elite negra de Abdijan (num país as guerras interinas ditaram uma clivagem Norte/Sul) sente-se confortável para receber Marcelo e ‘competente’ para conceder títulos honoríficos gentílicos.

Costa do Marfim que é mais um exemplo da fragilidade, diria, da majestática inconsistência (política e económica), dos países africanos emergentes do processo de descolonização, despoletado após o fim da II Guerra Mundial e que continua a exibir uma instabilidade impressionante. Não por culpa própria (dos seus povos) mas porque o processo descolonizador foi enviesado e não conseguiu libertar os autóctones das teias inerentes aos equilíbrios internacionais vigentes que, será prudente considerar, derivaram para formas de ‘neocolonialismo’ e, mais tarde, com a chegada da globalização,  acabariam por devolver este País – e outros países africanos - para uma situação ancestral: – a pobreza e o subdesenvolvimento.

Tratando-se de um dos grandes produtores mundiais de cacau – que sucedeu ao ciclo do marfim (extinto na 2ª metade do séc. XX) - tem um economia muito focalizada no comercio deste produto percursor do chocolate e na exportação de madeiras, com o controlo dos preços das commodities concertado pelos grandes grupos económicos internacionais, facto que tem originado dias difíceis. Tal situação motivou o pedido da Costa de Marfim para adquirir o estatuto de observador na CPLP. Esperemos que esta viagem não seja o introito de mais um ‘caso Guiné Equatorial’.

Embora no que particularmente diz respeito ao nosso País verificamos que a Costa do Marfim não é um elemento estranho à nossa saga expansionista (Descobrimentos) bem como ao tão embaraçoso envolvimento (à luz dos tempos atuais) com o comércio de escravos (nosso, francófono e holandês) e, em termos históricos estratégicos, esteve em linha (através do Mali e da Argélia) com as rotas nómadas do ouro que cruzavam a África subsariana em caravanas em direção ao (distante) Mediterrâneo.

O que residualmente mostra a recente visita de Marcelo à Costa do Marfim?

Que, apesar da globalização, já estivemos mais longe do tribalismo do que julgamos. Existe um movimento de regresso à identidade tribal que é essencialmente reativo, mas deveras preocupante. Esta movimentação é por vezes rotulada de ‘pós-modernismo’ mas nas múltiplas intervenções, que ocorreram em vários países, em diferentes continentes, sob uma equívoca bandeira da Democracia e de uma marcha para o Desenvolvimento, verificamos que redundaram em fracassos, quando não em tragédias e no essencial desorganizaram comunidades e sociedades secularmente implantadas. Daí o estímulo para o ‘regresso às origens’.

O tribalismo é um recuo para uma circunstância mais diminuta e, em termos sociais, aparentemente mais coesa. Os vínculos sociais tendem a confundir-se com os familiares e, sendo assim, temos o paulatino regresso às rotinas e culturas tradicionais enfeudadas nas vivências das velhas tribos. Este recuo está em consonância com as recentes demonstrações do espírito partidário já que, cada vez mais, a atividade político-partidária diz respeito à ‘nossa tribo’ e cada vez menos aos cidadãos. O populismo emergente não deixa de ser uma manifestação tribal.

Difícil, nos dias que correm, será entrelaçar estes valores aparentemente arcaicos com o progresso tecnológico. De certa maneira, esta ‘flutuação’ representa, ou traduz-se, em algumas das mais recentes preocupações ecológicas. Renasce, por todo o lado, um ‘ideal comunitário’, muito invocado por políticos, idealistas, naturistas e até religiosos mas, cada vez mais, desfasado da contemporânea marcha humana. A ‘proxémia’, isto é, o espaço pessoal circundante está cada vez mais instável e, pior, pouco preenchido já que dependente das redes sociais. Na verdade resta a Natureza cada vez mais importunada e ameaça pela intervenção humana. O ‘primitivismo’ (que não é exatamente o mesmo que o tribalismo) pode estar de volta com a consciencialização tecida à volta das ‘políticas verdes’.

A ‘cerimónia gentílica’ feita em honra de Marcelo na Costa do Marfim representa, de certo modo, um ténue reavivar de um tribalismo primitivo como fenómeno cultural inerente às relações humanas (e económicas), recheado de ‘impressões tropicais’ que, muito embora, legítimas, são de certo modo estranhas.
É chocante quando se confronta o cosmopolitismo de um homem que nasceu e cresceu numa metrópole colonial (Lisboa), isto é, noutro ambiente político-cultural e, a adoção de atitudes de fingido convívio e integração com outras culturas quanto de todo este processo soa a falso.
Vamos supor a seguinte rábula: um qualquer presidente da República (português) deslocava-se à Noruega para desenvolver as trocas comerciais (o celebrado bacalhau, p. exemplo) e apresentava-se perante o rei Harold vestido de viking. Ninguém está a ver esta cena.

O exercício de funções públicas conduz, por vezes, a estas situações (caricatas) e visualiza contradições que estarão, para além do imediato, condicionadas por normas protocolares e diplomáticas difíceis de ultrapassar sem ofender o país anfitrião.
É  justo pensar que nesta complexa teia de relações internacionais oficiais onde tudo é programado e avaliado previamente pelo que é difícil aceitar - sem comentários - situações como a que ocorreu. A ‘política folclórica’, ou o ‘folclore na política’, não é uma saída comoda (ou adequada) para efeitos de relacionamento diplomático (fora do contexto das relações culturais, de laser e de divertimento).

De qualquer maneira a ‘entronização de Marcelo’ foi uma situação mais elegante e comedida do que a caricata subida de um coqueiro, em Janeiro 1990, protagonizada por Cavaco Silva, em S. Tomé ou, para nos quedarmos mais pelo torrão pátrio (adjacente), os desfiles carnavalescos de Alberto João Jardim pelas ruas do Funchal, travestido de soba (zulu).

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