A LIBERDADE QUE ABRIL NOS DEU
Exemplos da Censura nos anos 1968 e 1969
Por Onofre Varela
Com este artigo termino a série de uma dúzia de textos que dediquei à “Liberdade Que Abril Nos Deu”. Foi o meu testemunho das acções censórias que senti nos jornais por onde passei na minha carreira de cartunista, caricaturista, ilustrador e autor de textos, nos três grandes diários com sede no Porto: O Primeiro de Janeiro (PJ), Jornal de Notícias (JN) e O Comércio do Porto (CP), para além de mais alguns semanários humorísticos entretanto surgidos e desaparecidos.
Para terminar este testemunho não me pareceu nada melhor do que referir um livro da autoria do meu camarada jornalista César Príncipe no JN e personagem carismático da imprensa nortenha. Para além de jornalista, negociava Arte e tinha a particularidade (tinha, e tem!… Está vivo e actuante, embora de saúde um pouco debilitada a caminho dos 90 anos de idade) de, imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974, chegar ao jornal conduzindo um Rolls-Royce de cor creme. Quando os seus amigos comentavam: “Então tu és comunista e tens um Rolls-Royce?!”, invariavelmente o César respondia: “Sou comunista… não sou burro!”.
O seu livro “Os Segredos da Censura” teve segunda edição na editorial Caminho em 1979 e contempla uma recolha de “telegramas telefonados da Censura fascista, contendo ordens transmitidas a um jornal diário”. A leitura deste livro permite ao leitor tomar conhecimento do modo como a “Comissão de Censura”, criada pelo governo de Salazar, actuava perante os jornais impondo “a tortura das palavras e das imagens, a execução sumária de factos, relatos e interpretações […] um irreparável holocausto cultural e informativo” que foi executado na vigência da ditadura. Dia-a-dia e noite-a-noite as ordens dos coronéis do regime ditavam, pelo telefone, os cortes das notícias que não podiam ser divulgadas inteiras, cujas notícias, por imposição governamental, chegavam aos censoras em forma de provas tipográficas que os estafetas das redacções continuamente lhes forneciam.
A censura dos jornais foi imposta pelo golpe de 28 de Maio de 1926 que promoveu Oliveira Salazar e originou o Estado Novo. Mas não foi a primeira censura estabelecida por cá. O início da censura dos jornais aconteceu em 1627 na Corte Régia de Filipe II, quando Espanha dominava o território Português. Após a reinstauração da independência, em 1640, D. João IV, por lei de 1643, manteve a censura aos jornais, a qual só foi eliminada em Dezembro de 1821 pelas Forças Liberais que decretaram a Liberdade de Imprensa. No reinado de D. Miguel a Censura voltou a ser reposta, e em Dezembro de 1834 a Liberdade de Imprensa foi retomada, mas muito precariamente. Após o 5 de Outubro de 1910 a implantação da República trouxe consigo a total liberdade de expressão e de Imprensa… até ao fatídico 28 de Maio de 1926.
Só 48 anos depois, com a Revolução dos Cravos de Abril em 1974, a liberdade de expressão e de imprensa foi reimplantada, resistindo até hoje… com os “se não” acontecidos em algumas redacções em certos momentos e por certos empresários ou profissionais do jornalismo.
Do livro de César Príncipe transcrevo alguns exemplos de telefonemas dos censores para o chefe de redacão, nos anos de 1967 e 1968, com referência às cheias do Vale do Tejo e à morte de Salazar, entre outras:
13/3/67: “Eleições em França. Eliminar qualquer relevo aos comunistas”.
1/4/67: “julgamento de abate de burros no Tribunal de Géneros Alimentícios. Não pode ser publicada qualquer referência aos meios coercivos para obter confissões”.
4/4/67: “Qualquer referência ao filme Quem Tem Medo de Virgínia Woolf – SUSPENDER”.
28/4/67: “Vinte e duas toneladas de bananas impróprias para consumo. Não se pode pôr, em título, a quantidade da fruta nem dizer que houve cenas bastante lamentáveis. Nada de gravuras”.
30/4/67: “Pampilhosa. Actos de loucura de um sargento do Exército. Não dizer que é sargento do Exército. Senhora de Vila Maior, S. Pedro do Sul, morreu ao tomar conhecimento de que o filho embarcava para o Ultramar. Não falar em Ultramar”.
4/5/67: “Fornecimento de tecidos à Força Aérea, sem concurso. CORTAR”.
9/7/67: “Festival Aéreo de Moscovo. Não dar relevo. A coisa não tem importância”.
29/11/67: “Inundações: os títulos não podem exceder a largura de ½ página e vão à CENSURA. Não falar do mau cheiro dos cadáveres”.
5/12/67: “Tudo quanto se refira a Bertrand Russell – CORTAR”.
30/12/67: “Baile de passagem de ano, no Palácio dos Valenças, em Sintra. Não dizer que a receita se destina às vítimas das inundações”.
2/3/68: “Posto em liberdade por lhe ter sido concedido o Habeas Corpus, o Dr. Mário Soares apresentou cumprimentos aos jornais – CORTAR”.
28/4/68: “Aniversário do presidente do Conselho. Não dizer que completou 79 anos”.
4/5/68: “Serviço religioso por alma de Luther King, no templo de Santa Isabel em Lisboa. – CORTAR.”
4/6/68: “Não publicar fotos da viúva de Luther King e do estudante francês Cohen”.
21/7/68: “Anúncio da fábrica de Coina sobre exportação de 1 milhão de gabardines. Não dizer que vão para a Rússia”.
9/9/68: “Não dizer que o estado de saúde do presidente do Conselho é estacionário”.
10/9/68: “Salazar: grupo da TV italiana. Não dizer que veio a Lisboa por causa da doença do Chefe do Governo. CORTAR a frase: “Está melhor do que nunca”. Uma entidade qualquer terá oferecido a Salazar duas dúzias de peras e um melão – CORTAR. Medicamento vindo do estrangeiro através da TAP – CORTAR. Frase do ministro da Economia: “Não há lugar para a interinidade” – CORTAR. Localização do quarto – CORTAR. Declarações da governanta D. Maria – CORTAR. Não dizer que há um médico de serviço durante a noite.
12/9/68: “Versos que acompanhavam as flores enviadas por Amália Rodrigues a Salazar:
“Cultura é experiência,
Já ouvi dizer a alguém;
É de viver a ciência
Que eu tenho de lhe querer bem.
Gosto de si e de flores
Um jeito igual de gostar.
Fui sentindo estes amores
Sem os saber explicar.
Ponha-se-me bom depressa,
Meu querido presidente,
Depressa, que essa cabeça
Não merece estar doente.
Não sei de regulamento.
E se isto é má criação,
Perdoe o procedimento
E aceite-me a intenção.
Um beijinho grande da Amália.
CORTAR.
Era assim que os leitores dos jornais Portugueses eram “informados” em tempo da Ditadura.
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