“SENTIR-SE” OU “SER-SE” OFENDIDO
Por Onofre Varela
Acabei de chegar de um encontro de caricaturistas reunidos em fim-de-semana nas vilas de Espinhal e Penela, na “IX Bienal de Humor Luiz d’Oliveira Guimarães”, a qual se realiza com o alto patrocínio das respectivas autarquias e da família do jurista, dramaturgo, jornalista e humorista Luiz d’Oliveira Guimarães (1900-1998).
As cerimónias de inauguração desta IX Bienal foram encerradas no Domingo, dia 1 de Setembro, com uma tertúlia moderada pela jornalista Fernanda Freitas, com a presença da historiadora Irene Flunser Pimentel, o juiz desembargador Renato Barroso, o cartunista António (Expresso) e Osvaldo Macedo de Sousa, historiador de Arte e director artístico da Bienal. Discutiu-se “Resistência e Resiliência Humanas”, e abordou-se a “Liberdade de Expressão”: onde começa e onde termina ela?
Cada sociedade onde se viva em Democracia plena, tem o seu “balizamento” da questão, sendo que em França, por exemplo, tal balizamento não existe. A liberdade é total e os tribunais decidem se houve “insulto tomado como liberdade de expressão”.
Por cá temos o caso do “preservativo no nariz do Papa João Paulo II”, do cartunista António, publicado em 1992 e que motivou um abaixo-assinado promovido pela Igreja Católica (IC) para que se limitasse a Liberdade de Expressão (ou se terminasse com ela). O caso foi discutido no Parlamento e a Liberdade de Expressão saiu vencedora como só podia ser numa sociedade moderna, democrática e ocidental.
O tema desta tertúlia trouxe-me à memória a campanha que o Bloco de Esquerda (BE) fez, em 2016, a favor da adopção de crianças por parelhas do mesmo sexo, usando a frase “Jesus também tinha dois pais” e que a IC contestou por se sentir ofendida.
O BE reconheceu ter sido um erro usar aquela mensagem e, assumindo uma atitude “politicamente-correcta”, desculpou-se e retirou-a.
Quero aqui dizer, em favor da Liberdade de Expressão, que quando alguém se sente ofendido, esse sentimento não é, por si só, prova de que o tenha sido realmente. “Sentir-se” não é o mesmo que “ser-se”. Eu posso sentir-me rico… e ser pobre (ou vice-versa)!…
Qualquer ofensa só é real se for exercida com a consciência de ofender. Se na sua origem não estiver a atitude de ofender, a ofensa não passa de um incidente que foi lido como ofensa pelo receptor, independentemente da intenção do emissor.
Como ateu estou habituado a ver o meu discurso ser interpretado, pelos religiosos, como ofensa. E quando me abordam nesse sentido faço a “prova dos nove”, lendo ao “ofendido” o texto que o meu interlocutor diz ter sido um insulto à sua fé. Invariavelmente fica provado que o modo de ler (interpretar) faz a diferença entre a opinião e o insulto.
Há quem inicie a leitura de um texto (sabendo que foi escrito por um ateu), com intenção negativa e preparado para ver por ali ofensa à sua fé. E quando esta ofensa não existe, ele acaba por a “ver” porque está mentalmente preparado para a fabricar!
Por isso aceito que o BE usasse aquela imagem, e aquela frase, sem pensamento ofensivo, por não ter essa intenção à partida… como ofensiva não era a intenção do cartune do preservativo no nariz do Papa… mas a atitude da Igreja em querer anular a Liberdade de Expressão, ISSO, SIM… JÁ É OFENSIVO por pretender limitar o raciocínio de cada um e terminar com a “Sagrada Liberdade de Expressão”!…
Alargando este raciocínio aos textos bíblicos, incluindo neles os neo-testamentários, eles estão sujeitos a interpretações várias, e não é lícito rotular de ofensiva qualquer interpretação que choque com entendimentos religiosos.
Por exemplo: para um ateu, a gravidez de Maria, anunciada por um anjo, não é um facto histórico, mas sim uma “estória-de-fé”. É uma cópia, adaptada pelos cristãos, da gravidez de Alcmena violada por Zeus (na Mitologia Grega) de cuja violação nasceu Hércules e que os escribas cristãos copiaram e retocaram a seu jeito.
Zeus lambuzou-se no leito de Alcmena tomando a forma de Anfitrião, o seu marido, para a enganar à boa maneira dos homens perversos e traidores (em que os deuses se espelhavam).
A versão de Maria é mais cândida por escamotear o acto carnal da cópula, mas também mais irreal por nada ter de natural. Todos nós sabemos que uma gravidez precisa de um óvulo e de um espermatozoide que o fecunde. (Naquele tempo não havia laboratórios de inseminação artificial, nem clonagem!).
Dizer o contrário disto, é fé divorciada de qualquer realidade… e impor esta fé a uma comunidade é desrespeitar o raciocínio de cada um.
Por muito respeito que nos mereçam os nossos amigos crentes, todos nós temos o direito ao nosso próprio raciocínio, e não é falta de respeito questioná-los: Se José é afirmado como pai adoptivo de Jesus… teve de haver um pai biológico… e a biologia implica sexo!…
A fé tolda a razão?!… Se sim, é bom que os religiosos tomem consciência disso e deixem de se sentir ofendidos pelas lícitas considerações de quem dispensa a fé e o mito por lhe bastar a natural realidade das coisas naturais.
Se a gravidez de Maria anunciada por um anjo, é sagrada… a minha Liberdade de Raciocínio e de Expressão é igualmente Sagrada!
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