A UE a NATO e a guerra na Ucrânia – A opinião de Miguel Sousa Tavares
OS HOMENS DEVEM ESTAR LOUCOS (in Expresso de 20-09-2024)
No “Fórum TSF”, discutindo-se o envio de armas de longo
alcance para Kiev, com a finalidade de serem utilizadas contra território
russo, e as possíveis represálias de Moscovo a essa escalada da guerra, um
ouvinte, corajosamente sentado na sua secretária, opinava, seguro, que nada
havia a temer: mesmo que Putin levasse avante a sua ameaça de recorrer a armas
nucleares, e se bem que o arsenal russo seja o maior do mundo, a superioridade
tecnológica ocidental garantiria a vitória final. Uma douta opinião, por muitos
partilhada, mas que assenta em duas presunções, uma abusiva, a outra
simplesmente idiota. A presunção abusiva é a habitual, a de que cada vez que
Putin abre a boca está a ameaçar com armas nucleares. Curiosamente, nunca o
fez, pelo menos explicitamente, mas são sempre os media e os dirigentes
ocidentais que põem a ameaça nuclear na boca dele: ou porque lhes interessa
para efeitos de propagada ou porque acham mesmo, e temem, que essa possa ser a
resposta fatal a cada novo passo do engajamento da NATO na guerra da Ucrânia. O
que Putin disse desta vez foi que o fornecimento de mísseis de longo alcance a
Kiev por parte de países membros da NATO, acompanhado da licença do seu uso
contra território russo, equivaleria a uma declaração de guerra da NATO à Rússia,
a qual “acarretaria consequências”. Sem perder tempo, essas “consequências”,
tal como no passado, foram imediatamente traduzidas pela ameaça de utilização
da arma nuclear. Quanto à presunção simplesmente idiota do ouvinte da TSF, ela
consiste em imaginar que uma guerra nuclear na Europa, entre a NATO e a Rússia,
se limitaria ao território da Ucrânia e que dela restariam vencedores e
vencidos.
Como é que chegámos aqui, a este patamar de insanidade
geral, com os nossos governantes a acumularem passos cada vez mais próximos do
caminho de uma terceira guerra mundial, sem que os povos sejam esclarecidos e
consultados? Que Putin o faça com o seu povo, ninguém estranha: é um ditador.
Mas, e as democracias? Ainda agora vimos o novo PM inglês, o trabalhista Keir
Starmer, correr a Washington para suplicar a Biden que junte os ATACMS
americanos aos Storm Shadow ingleses e aos mísseis franceses para uma tempestade
de fogo sobre os céus da Rússia. Acrescentou que se trata apenas de “ajudar a
Ucrânia a enfrentar o inverno” e a conseguir prosseguir a guerra em pé de
igualdade. O louco não só quer continuar a guerra sem fim à vista como ainda
acredita, ou finge acreditar, que a Ucrânia pode vencer a guerra, mesmo quando
já não dispõe de soldados que queiram combater e civis que queiram continuar a
viver debaixo de bombardeamentos e escombros. Como disse o Presidente mexicano,
López Obrador, a mensagem do Ocidente para Kiev continua a ser “vamos continuar
a guerra, com as nossas armas e os vossos mortos”. No que à Inglaterra
respeita, esta tem sido, aliás, uma política consequente e consensual: foi o
antigo PM Boris Johnson quem, ao segundo mês de guerra, foi expressamente a
Kiev dizer a Zelensky que não assinasse o acordo de paz com a Rússia, já
negociado em Ancara, pois que era possível correr com a Rússia da Ucrânia à
força, com os meios que os países da NATO poriam à sua disposição. O mesmo
Boris Johnson que depois de sair de Downing Street se dedicou a correr mundo
dando conferências sumptuosamente pagas para defender a continuação da guerra,
onde os ucranianos combatiam em defesa das propostas e dos honorários dele...
Mais tarde, foi o secretário da Defesa americano, Lloyd Austin, quem foi a Kiev
reforçar a mensagem ocidental, explicitando que o objectivo final da guerra da
Ucrânia não era apenas correr com os russos de lá, mas enfraquecê-los de tal
maneira que de futuro não mais se atrevessem a aventuras militares: fora de
combate. Nesta estratégia de tudo pela guerra, nada pela paz, a Inglaterra
andou sempre um passo à frente dos Estados Unidos, mas, com a surpreendente
colaboração de Macron, foram conseguindo arrastar Biden, hesitando sempre
primeiro, acabando por aceitar depois: conselheiros militares, partilha de
informações sensíveis, sistemas de mísseis, tanques de última geração, F-16 e —
é só esperar uns dias — os mísseis de longo alcance para atacar território
russo. Tudo o que Zelensky tem pedido, mais tarde ou mais cedo, tem obtido. Só
lhe falta, e já o lamentou, não dispor de armas nucleares — o que é uma ironia
histórica, pois que, quando a Rússia deu a independência à Ucrânia, a grande
preocupação ocidental foi justamente que Moscovo não deixasse para trás, em
mãos ucranianas, as armas nucleares que ali tinha estacionadas.
A guerra da Ucrânia, evitável desde antes do início da
invasão russa, tem sido a ruína da Europa: arruinamo-nos para comprar armas aos
Estados Unidos e depois fornecê-las à Ucrânia (70% delas), vimos a Alemanha, o
motor económico europeu, gripar devido ao fim das importações de petróleo e gás
russo com a sabotagem dos oleodutos Nordstream (onde pára o inquérito, aberto
há mais de ano e meio?), pagámos a guerra com inflação, com energia mais cara,
com o fim do mercado importador russo, com dez passos atrás nas políticas de
descarbonização, com uma descolagem brutal na competitividade da economia
europeia face às dos Estados Unidos, China ou Índia: está tudo no Relatório
Draghi, só não se diz porquê. Mas, graças ao alinhamento militante de uma
imprensa submissa a acrítica como nunca tinha visto, a própria palavra paz
tornou-se símbolo de rendição, quando não de conivência com Putin, e até, numa
curiosa inversão de valores, um sinal de falta de solidariedade com os
ucranianos que já morreram e os que ainda vão morrer. Um por um, todos os que
ousaram tentar ou sugerir um acordo de paz para pôr fim à guerra, foram
politicamente exterminados, as suas palavras deturpadas, as suas intenções
vilipendiadas: Erdogan, o ex-PM israelita, Xi Jinping, o Papa Francisco, Lula
da Silva, o Presidente do México, quem quer que não professasse o credo da
guerra para sempre e até à vitória final. Nunca tantos se deixaram arrebanhar
tão facilmente durante tanto tempo.
Para nos assustar e convencerem da sua razão, dizem-nos que
se Putin não for contido, acabará sentado em Kiev, e não ficará por aí, como
garantiu Kamala Harris. Nenhum dado, nenhum relatório de serviços secretos,
nenhuma tese de observadores independentes, nenhuma análise séria e lógica
confirma tal dedução, mas isso o que interessa? Mais depressa e com mais razões
Putin concluirá que os mísseis de longo alcance disparados contra a Rússia não
se deterão em objectivos militares ou estratégicos e rapidamente estarão a
visar Moscovo ou São Petersburgo — e, aí sim, entrará em vigor a doutrina
nuclear russa, que é conhecida e idêntica à das potências nucleares ocidentais.
Então, o que esperam, o que querem estes loucos que nos governam? Atravessámos
décadas de Guerra Fria a temer que qualquer estúpido acidente de percurso
levasse alguém, de qualquer dos lados, a carregar no botão vermelho. A evitar
cuidadosamente que qualquer dos lados fosse levado a sentir-se ameaçado ao
ponto de perder a cabeça e carregar no botão. E agora andam a brincar com o
fogo, testando até onde irá o sangue-frio e o juízo de alguém que eles próprios
classificam como louco e assassino, como disse Biden. Quem são os loucos,
então? Outra das teses da propaganda dos discípulos da NATO é a de que qualquer
negociação implicaria a cedência de territórios ucranianos. Porquê? Porque
Putin o disse. Disse, sim, como Zelensky disse que exigiria a devolução da
Crimeia. Qualquer negociação começa assim, com posições extremadas de ambos os
lados, e o papel dos negociadores é levá-los a perceber, neste caso, que um
acordo no meio termo é melhor para ambos do que uma guerra sem fim. É muito
fácil estar sentado aqui, no extremo ocidental da Europa a pregar que a NATO
dispare os seus mísseis e não se preocupe com as armas nucleares de Moscovo.
Mas se ele estivesse numa aldeia da Ucrânia, à mercê de bombardeamentos
diários, a ver a sua casa destruída, os seus familiares e vizinhos mortos e uma
vida sem outro futuro pela frente, quem sabe não acabaria a desejar a vitória
de Trump nas eleições americanas? “A vida é uma história contada por um
idiota”, escreveu Shakespeare.
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