No muro das lamentações da crise

NO MURO DAS LAMENTAÇÕES DA CRISE
(Ou uma outra forma de dizer umas verdades que, infelizmente já são lugares comuns)

- É uma lástima que quando agora os nossos filhos vêm desabafar connosco a dizer que já não aguentam mais ver e conviver com tantas falcatruas, desonestidades e falsidades, a gente não encontre mais nada para lhes responder senão que a vida, infelizmente, é assim mesmo, e que neste mundo cão o que eles têm a fazer é aguentar e procurar sobreviver.
- É uma lástima a gente ouvir dizer e calar que as crises são uma boa oportunidade para encontrar soluções novas e dar mais um salto em frente, mesmo quando as crises – e esta poderá ser uma delas – muitas vezes acabam por desembocar em medonhas guerras, de que é evidente exemplo a 2ª Guerra Mundial, chegando-se até ao ponto de alguns chamarem para aqui aquilo que teria sido o grande erro de Salazar, esquecendo-se essas e outras pessoas, e até alguns de nós se nos distraímos, tão humanistas que nos reclamamos, de que vale mais uma única vida humana do que uma guerra com benefícios futuros e todo o ouro, sabe-se lá como foi entesourado.
- É uma lástima que com tudo o que pensamos do sistema, demos por nós a desejar que estes tipos, que são os mais responsáveis pela crise que sofremos tenham sucesso com as medidas draconianas e desumanas a que nos estão e vão continuar a submeter.
- É uma lástima olhar em frente e nada vermos. E deixarmos de nos interrogar de onde viemos e para onde vamos, mesmo sabendo, como sabemos, que essa é a magna questão que continua sem resposta e causa maior da angústia dos homens desde as mais remotas antiguidades.
- É uma lástima que nos venhamos habituando a viver num sistema que sob a ilusória capa da democracia e da igualdade de oportunidades se funda na tese de que, queiramos ou não, os homens não são todos iguais – e não são, bem sabemos, e ainda bem – e que as crises como esta que atravessamos sem fim à vista, é uma boa oportunidade para se revelarem e triunfarem os mais fortes e mais bem dotados, e assim, de crise em crise, sobrevive e progride este modelo de sociedade alicerçado em tais pressupostos e que só serve os galifões e oportunistas.
- É uma lástima que, contra todos os alertas e avisos, continuemos nesta corrida desenfreada do consumo de tudo o que pavloviamente nos é apontado como bom, gostoso, útil, necessário, e de óptima oportunidade, deixando atrás de nós montanhas de perigosos desperdícios e um rasto que mais faz lembrar os campos de morte dos arrozais cambojanos.
- É uma lástima que, levados por todas as manhas e artimanhas do mercado, como diz o filósofo, andemos a comer morangos em Janeiro.
- É uma lástima que, mais fracos que Moisés e mais cépticos que Tiago, numa curva mais apertada e obscura da História da Humanidade, tenhamos deixado de acreditar naquilo em que tão firmemente acreditávamos.
- É uma lástima que, de tão repetida, comecemos a convencer-nos da justeza da atoarda de que somos nós os únicos culpados do que nos está a acontecer, fazendo das vítimas os arguidos e dos criminoso vítimas, coitados, todos estes anos à espera, aqui, no nosso caso, de se desforrarem das afrontas e desgovernos que saíram do ventre do 25 de Abril.
- É uma lástima que tenhamos entregado o governo do mundo, primeiro aos economistas e depois aos banqueiros, aqueles com prognósticos só no fim dos jogos, estes com uma obsessão do lucro ainda mais exacerbada.
- É uma lástima que, como crianças tontas, nos tivéssemos deixado levar nas ondas da globalização e das novas tecnologias, entrando assim nesta vertigem, espécie de buraco negro que atrai tudo à sua volta para sugar e fazer desaparecer.
- É uma lástima que no meio disto tudo não nos tenhamos apercebido, porque não parámos para pensar, que a globalização de que tanto nos falam e enaltecem não é mais do que a última das ideologias conhecidas.
- É uma lástima que, embalados em tais ondas, nos tenhamos esquecido do homem, do outro e de nós próprios, pondo no lugar do humanismo a cultura, ou melhor, o culto da excelência e a lei do mais forte e mais capaz, sem deixar espaço nem lugar para o homem comum que, afinal, é o que todos nós somos, uns com mais sorte que os outros; e que homens comuns, quando não mesmo medíocres, são uma boa parte dos detentores do poder por esse mundo além, incapazes, eles sim, de olhar e interpretar os sonhos do futuro.
- É uma lástima que, apesar de todos os recuos, da venda ao desbarato de todas as utopias, das implosões e uniões espúrias, a sede do governo mundial continue no lugar onde antes estava, na Metrópole do Capitalismo; e que o poder, que devia ser dos povos, esteja entregue a criaturas sem rosto nem fala, uma nova estirpe de mutantes – humanos é que já não são – que a si próprios atribuíram o nome de mercados, sabe-se lá quem eles são e onde moram.
- É uma lástima que com tudo isto, e pesem os avanços da ciência e das tecnologias, naquilo que mais interessa à vida dos homens e à saúde da Terra, se tenha recuado sabe-se lá quantos anos.
E com todos estes lamentos, inacabados e assim alinhavados sem ordem de preferência, se calhar, o melhor ainda será, sabe-se lá, não levarmos isto muito a sério e embarcarmos noutra onda qualquer – isto é para rir – que até bem poderá ser a do Paulo Futre, que até parece que é isso mesmo que está a dar e tem saída, como na canção o “curso de computadores”.
- É uma lástima, é …


                                                            Viseu, 21-11-2011
                                                            Gertrudes da Silva

Nota do Ponte Europa - É uma honra publicar este texto de um dos mais importantes capitães de Abril. O coronel Gertrudes da Silva, escritor e cidadão empenhado,  foi o N.º 1 do seu curso e comandou o contingente militar que se reuniu na Figueira da Foz, libertou o presídio de Peniche e avançou sobre Lisboa. O seu acto heróico e a coerência cívica tornaram-no uma referência da Revolução de Abril. Talvez por isso não teve as estrelas de general.

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