Greves, (neo)sindicalismo e circo…
A situação que se gerou à volta da greve dos motoristas é relativamente complicada. Para quem está de fora mas segue atentamente o problema – a esmagadora maioria dos portugueses – reina a sensação que a ação de protesto decretada (legítima, sublinhe-se) não conseguiu prever com nitidez e rigor todas o tipo de reações que viria a desencadear e, o que será ainda pior, qual o alvo real da contestação.
Facilmente, toda esta movimentação sindical foi objeto de uma ampla campanha mediática que, em poucos dias, virou a população contra os motoristas.
Ao entregarem a condução da luta a um curioso (vamos ficar por aqui…) estranho ao sector, isto é, ao advogado Pedro Pardal Henriques, perderam o contacto com a realidade laboral e desencadearam um processo reivindicativo que, partindo de posições justas (é importante reconhecer), rapidamente se transformou numa situação profissionalmente deslocada (à volta de uma cascata de reivindicações irrealistas), socialmente desajustada, acabando por gerar muitos anticorpos na sociedade.
A situação no sector dos combustíveis é complexa e não têm sido fornecidos dados, nem informações concretas que proporcionem uma compreensão aos portugueses deste contexto. Interessaria saber se os sindicatos ao partirem para formas mais aprofundadas de luta analisaram previamente os parâmetros da cadeia de valor – a partir do processo de refinação - no sector petrolífero e do gaz, em Portugal. Esta análise é muito complexa e envolve diversas estruturas a começar nas refinarias, passando pela distribuição grossista e armazenamento, desembocando na distribuição retalhista pelos postos de abastecimento pelas unidades industriais e serviços logísticos de transportes (p. exº. aeroportos e terminais portuários marítimos).
O grande volume dos 2 principais combustíveis utilizados (gasolina e gasóleo) tem originariamente 3 fontes de refinação (Sines, Matosinhos e uma pequena percentagem importada) que, através das empresas representadas pela ANTRAM e o desempenho dos motoristas, abastecem uma rede de postos de distribuição por todo o País, com evidentes assimetrias relacionadas com a carga demográfica e correlativo índice de procura. Isto é, o ‘esforço de distribuição grossista’ será diferente no distrito do Porto (407 postos) e em Portalegre (37).
Na realidade, desconhecemos o conteúdo das negociações que decorreram, sob a tutela do Ministério das Infra estruturas e da Habitação, entre os 2 sindicatos promotores das greves (SNMMP e SIMM) e a ANTRAM link e se, de facto, a cadeia de valor deste sector energético foi analisada e dissecada para perceber se existem e onde residem distorções (e opíparas mais-valias) e se encaixa o espaço reivindicativo.
Um pouco empiricamente existe – no senso comum e numa análise sumária dos balancetes anuais - a sensação de que as grandes companhias do sector energético (petrolíferas), como p. exº. a Galp, capturam a ‘parte de leão’ desta cadeia link. Uma análise criteriosa desta situação será importante para escolher o alvo das reivindicações por parte de quem está colocado e trabalha no fim da cadeia (caso dos motoristas de matérias perigosas).
Por outro lado, é de supor que a resposta governamental possa ter surpreendido os sindicatos que decidiram decretar a greve. A situação presente mostra-se em todos os contornos substancialmente diferente da verificada em Abril 2019 quando surpreenderam o País, conseguiram o reconhecimento da especificidade da profissão e criaram condições favoráveis de negociação da tabela salarial, dos subsídios de risco, da formação profissional, de seguros de vida e exames médicos.
Todavia, paralelamente a esta conquistada abertura negocial, a ação grevista de Abril 2019, gerou no País uma situação de alerta em termos de ‘alarido social’, bem como, da concomitante capacidade em influenciar a Economia nacional que o Governo em fim de mandato e à boca de um escrutínio popular não pode deixar correr. É a chamada 'correlação de forças' que as estruturas sindicais não podem ignorar sob pena de incorrerem em 'lutas inglórias'.
Esta cavalgada fez soar as campainhas e provocou o disparar de medidas preventivas (entre elas uma extensa listagem de serviços mínimos e a requisição civil) com uma dimensão e intensidade inauditas.
A luta sindical passou, a partir desse momento, a pisar terrenos políticos tanto mais sensíveis quanto se verifica a proximidade de um ato eleitoral e se verifica uma pressão popular para demonstrar a autoridade do Estado na defesa dos interesses coletivos. O problema é saber quando acaba a autoridade e começa o autoritarismo ou, quando, interpretações avulsas ou pareceres de encomenda, podem torpedear os direitos constitucionalmente protegidos. Mas este é um outro problema, mais um que não foi cuidado pelos (neo)sindicalistas.
Hoje, se acaso as direções destes novos sindicatos tivessem experiência de luta sindical, o resultado das reuniões prévias à greve a consumação grevista poderia eventualmente ter outro desfecho. Não é sindicalista quem quer mas quem pode (e deve) ser. Entra aqui a velha questão da teoria política e das ciências sociais sobre o conceito de ‘consciência de classe’.
Não basta recorrer das decisões judiciais desfavoráveis em termos de definição dos serviços mínimos e avançar na mesma como se nada tivesse acontecido, como também os sindicatos envolvidos não podem ignorar os pareceres da Procuradoria-Geral da República que vieram a criar condições para uma nova interpretação da ação grevista.
Aliás, se acaso existisse o mínimo de visão estratégica o teor do parecer da PGR deveria ser o suficiente para suspender a greve. Na verdade, o mais prudente e aquilo que se mostra mais adequado em termos sindicais seria evitar a homologação do citado parecer pelo Governo, situação que poderá afetar, no futuro, este tipo de reivindicações sindicais, como foi denunciado por partidos políticos de Esquerda e centrais sindicais.
Com a ‘resposta musculada’ do Governo, a validação de um extenso rol de serviços mínimos que comprometem o desenrolar da greve e a possibilidade de uma requisição civil preventiva deixaram de existir condições objetivas para o êxito da projetada ação grevista e isto não pode ser desvalorizado pelas estruturas sindicais.
A esta circunstância acresce a possibilidade de, para futuro, a insistência na prossecução da ação grevista só poder ter como consequência o consagrar de limitações do exercício do direito constitucional à greve que se esboçam em múltiplas declarações públicas e legitimamente inquietam a Esquerda e as organizações sindicais no terreno.
O ‘sindicalismo de nova vaga’, como por exemplo, o STOP (dos professores), o SINDEPOR (dos enfermeiros), entre outros, parece ser uma nova corrente que pretende entender o sindicalismo como uma atividade de mercado e, nesse engodo liberal, julgam possível substituir as clássicas estruturas sindicais enquanto organizações autónomas de classe, por volúveis e efémeras start ups (onde até o crowdfunding já chegou!), capazes de ser ‘comandadas’ por gestores ou técnicos estranhos à profissão, ao sabor das oportunidades de ‘mercado’.
Ora, a base de todo o sindicalismo, isto é, a solidariedade social, não se vende nos supermercados, nem se constrói em gabinetes de gestão ou jurídicos. A componente mecânica e a orgânica desta solidariedade, que deve ser extensiva a todos os trabalhadores dentro do amplo significado da camaradagem, não pode ser objeto de manobras circenses, nem colonizada por estranhos que, em última análise, só poderão prejudicar os que diariamente, e em condições adversas, vendem a sua força de trabalho.
Em relação à greve dos motoristas de matérias perigosas é neste ponto que nos encontramos.
Comentários
Isto são movimentos grevistas de trabalhadores ou movimentos terroristas?
A lógica argumentativa utilizada pelas forças em confronto e a diversidade de opiniões lidas na blogoesfera não mostram racionalidade. É o vale tudo! A situação caótica criada e desenvolvida só pode levar ao populismo em Portugal.A quem interessa?
Haja lucidez!