O futebol era uma paixão (Crónica)

Só depois dos dez anos comecei a perceber o motivo de, até aí, nunca me ter sido recusado lugar nas equipas de futebol que nasciam espontâneas entre garotos. Talvez sentisse a falta de entusiasmo dos parceiros, mas no calor da disputa não via os esgares de dor que os erros de pontaria frequentemente provocavam quando, por inabilidade, a bola que tinha como alvo era substituída pelas canelas dos companheiros que se atravessavam na trajectória do meu pé.

Nunca, antes, me tinha interrogado sobre as qualidades para um desporto que exercia em mim uma atracção irresistível. Jamais me dera conta da pouca habilidade que pudesse ter. Pelo contrário, algumas vezes tinham sido os outros a perguntar se não queria jogar à bola e a procurar convencer-me para ficar à baliza, lugar que a minha impaciência desprezava e eles tinham como o mais adequado ao meu perfil.

Só então me dei conta de ter sido dono da única bola, durante a instrução primária.

Depois, no liceu, perdida a protecção materna e o respeito devido, medroso e inábil, fui-me transformando no bode expiatório dos insucessos alheios, alvo de tareias com que os outros garotos se vingavam de um medíocre-menos a português ou de um mau-grande a matemática, num crescente prestígio que ultrapassou a turma que em breve perdeu o monopólio das sovas que me eram destinadas. Era medroso, já o disse, não é por me gabar, e a alcunha de Nené era um incentivo eficaz para avanços de algum mais timorato. Foram dois anos de excelentes notas e sólidas tareias, umas e outras em vias de extinção. As tareias terminaram quando reagi ao medo patológico e passei de bombo da festa a carrasco que desfeiteou dois colegas, em momentos diferentes, com violenta carga de pontapés fortalecidos pelo susto perante o gáudio de colegas que, em vez de me ovacionarem, apuparam as vítimas com expressões tão demolidoras como “até do Nené te deixaste bater”. Quanto às notas tive de esforçar-me menos, bastou o absentismo escolar, tendo quem respondesse por mim à chamada, abjurar os livros e começar a subir na consideração dos colegas, já ressarcido da ignomínia de ter frequentado o quadro de honra.

Alguns benefícios tive, pois, além de notas mais toleráveis pelos cábulas que eu idolatrava e que generosamente me acolheram. Não me deixei marcar por uma plêiade de incompetências pedagógicas nem tive necessidade de aprofundar a ciência sobre os estames da papoila e o órgão sexual da minhoca, ensinamentos que faziam corar os professores e emudecer de vergonha os alunos pelo carácter deletério, precursor da educação sexual que algumas décadas depois viria a ser objecto de reivindicação. Também me defendi de decorar o clima dos vários países, a fauna e a flora das colónias que a história se encarregaria de transformar em nações e outras inutilidades que levam as pessoas de então a repetir nostálgicas que nesse tempo é que se aprendia.

Mas o futebol continuou a exercer em mim uma irresistível atracção e a permitir-me suportar estoicamente o escrutínio dos outros jogadores, cada vez mais difícil, para participar. Era comum estarem seis ou sete garotos de um lado e menos um do outro, única situação em que podia aspirar à selecção. Dizia-me a experiência que o regozijo seria de pouca dura e que à primeira canelada era corrido à chapada e a pontapé, para bem longe, negando-me o simples privilégio de espectador. Mesmo assim aguardava ansioso o momento da selecção.

A minha entrada era sempre precedida de silêncios estranhos e insuportáveis delongas, apesar da evidente utilidade de as equipas começarem patas em número de jogadores. Por fim alguém dizia, com ar de enfado, “aquela merda que jogue”, decisão que me inundava de felicidade não obstante os termos pouco estimulantes e o epíteto moderadamente depreciativo com que o convite era formulado.

In «Pedras Soltas»

Comentários

Anónimo disse…
FORÇA NÉNÉ...

O comentário sobre futebol está giro. É que as coisas naquele tempo, passaram-se efectivamente assim. Quem não sabia jogar ia para a baliza...

Quero felicitar o autor do texto, porque revejo nele muitos colegas de escola, que eram bons alunos e maus a jogar à bola.

Futebol esse fascínio!...

Manuel Brito/PORTO
Anónimo disse…
Bonito texto, Carlos Esperança.
Apesar do fosso geracional que nos separa, encontro nas suas palavras algo com que me identifico.
Também eu carreguei o "fardo" de ser mau na bola e bom nas notas.
Mais tarde, enquanto aluno do Ensino Secundário, enquanto os meus colegas se entretiam a descobrir o álcool, eu lia e dedicava-me ao prazer do cinema.
Na Universidade, enquanto a maralha cantava a "mulher gorda não me convém" e bebia ainda mais, e lia e estudava.
Não pense que deixei de me divertir. Também apanhei a minha conta de bebedeiras e cometi uma ou outra loucura. A namorada, o primeiro carro, os maços de cigarros fumados como complemento fundamental ao estudo, as jantaradas...
Mas, como é óbvio, eu nunca fui um tipo particularmente popular entre os meus pares.
Epítetos de marrão, atrasadinho, menino da mamã, potenciados pelo meu aspecto franzino e com o facto de usar óculos, não me ajudaram na minha vida social enquanto jovem estudante.
Terminado o curso com a melhor nota final (digo-o sem falsa modéstia, porque esta é uma forma de arrogância), emprego garantido a fazer aquilo que mais me dá prazer (pessoal e profissional), é com mágoa que vejo, de passagem, esses antigos "gajos porreiros", populares entre pares, rebeldes "porque sim", a agonizar entre copos de cerveja ou seringas.
Não sou um poço de virtude (longe disso) e terei, certamente, perdido algo que poderia ter aproveitado nesses anos.
Ninguém é perfeito. Devia ter vivido mais...

Queira receber um abraço deste ateu socialista de além-Tejo.
Anónimo disse…
Saborosa escrita que, num pulo, nos transporta à bola de farrapos com acabamentos de meia de vidro, que girava entre calhaus do baldio de Decermilo, à frente dos tamancos - com testeiras das bicas da resina-, comprados na feira de Barrelas (Vila Nova de Paiva) ou Castendo (Penalva do Castelo).
Sorvida, à pressa, a malga do caldo, armava-se a contenda desportiva.
Só havia duas barricadas: uma do Sporting e outra do Benfica. Não há registos de vencedores ou vencidos, mas o sabor amargo da derrota, recordo, prolongava-se até ao adro da missa do domingo seguinte.
FP
Anónimo disse…
Só faltou a crónica dos tempos do Seminário...
Anónimo disse…
Nunca andei em sítios mal frequentados.

Não fui aluno de qualquer seminário.
Anónimo disse…
O Futebol é uma paixão sobretudo para o HORÁCIO, como tb o é a Misericórdia. Depende do interesse que tenha para SI e os seus!

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