As religiões e a liberdade

A religião continua a ser um feudo difícil de abordar, uma reserva protegida por medos, um espaço imune à crítica e defendido do escrutínio.

Pode criticar-se uma ideologia política, um sistema filosófico ou, até, uma evidência científica mas pôr em dúvida que o arcanjo Gabriel ditou o Alcorão a Maomé , entre Medina e Meca, ou que Moisés recebeu de Deus os Mandamentos, no Monte Sinai, é motivo de crispação e ameaças.

Em épocas de crise, quando a insegurança das pessoas procura arrimo no sobrenatural, as religiões ganham força e os descrentes são olhados com desconfiança e raiva. Os bruxos, quiromantes e outros profissionais de ofícios correlativos também expandem o negócio, nestas alturas, mas o sobrenatural é um domínio que é arriscado devassar.

Há nestes desvarios místicos diferenças substanciais entre as três religiões monoteístas que concorrem no mercado da fé. O judaísmo, embora assente no poderio financeiro e no destemperado imperialismo sionista, reduz-se a menos de quinze milhões de pessoas e não tem carácter prosélito.

O cristianismo, com o catolicismo a descambar para o anti-semitismo de raiz fascista, e as Igrejas protestantes num processo de atomização progressiva vão perdendo influência graças à secularização e, sobretudo, à liberdade que lhes faz pior dano do que a lixívia às nódoas. Apenas o cristianismo ortodoxo vive a euforia prosélita da aliança com o poder político, vício que se manteve no período soviético.

Já o islamismo, para desdita dos crentes, continua a pensar que não há mais mundo para além da fé, nem leis que o Corão não contemple. Sendo, como é, um plágio grosseiro do cristianismo, sem contaminação da cultura helénica e do direito romano, apresenta-se como um monoteísmo implacável, servido por uma ideologia guerreira e uma legião de serviçais violentos e vingativos.

A Europa confunde o respeito que os crentes merecem com as abomináveis crenças que discriminam a mulher e defendem amputações, vergastadas e lapidações. Só quem não leu a Bíblia e o seu plágio – o Corão – é que não vê a origem do mal que nos aflige nas determinações divinas que a democracia execra e a civilização abomina.

Mas enquanto fizermos de conta que os abomináveis livros são bons, os crentes radicais é que são maus, não acharemos saída para a ameaça que paira sobre a nossa civilização. Já basta a crise cujo fim não se vislumbra.

Comentários

Rui Cascao disse…
Eu, não sendo religioso, discordo no Carlos no que se refere à sua análise das três grandes religiões monoteístas.

Quanto ao judaísmo, refere e bem que não é uma religião que pratique activamente o proselitismo religioso. Tal deriva do carácter etnocêntrico dessa religião, que encara a sua etnia como sendo o povo eleito. Os únicos casos de conversão ao judaísmo que costumam ser reconhecidos pelo Shin Beth (tribunal religioso de israel) são de pessoas que conseguiram provar a sua etnia judaica jure sanguinis, provando que os seus antepassados foram levados à apostasia em determinado momento histórico.

Não concordo nomeadamente com a interpretação do islamismo como um "plágio" do cristianismo. Ora, o cristianismo procurou ser, na sua fase inicial, uma "evolução na continuidade" do judaísmo, procurando saneá-lo de alguns aspectos menos positivos da sua liturgia, e procurando transfigurar Elohim, o deus judaico, de deus criador e destruidor, ex machina, numa divindade mais interventiva e generosa (o conceito de amor). Foram várias vicissitudes que levaram a ideia originária do Cristianismo, essencialmente monoteísta, a absorver elementos ocidentais, nomeadamente através do sincretismo que se operou através da absorção dos deuses pagãos e da atribuição das suas "pastas" a santos mártires da igreja. Também à iconoclastia inicial se sucedeu a veneração de imagens, numa forma de adaptação desta igreja às exigências de um grupo de fiéis de diferentes etnias que se alargou muito depressa. O conflito entre iconoclastas (cristãos levantinos e orientais) e adoradores de imagens (cristãos gregos e ocidentais)perpassou toda a história do império bizantino, por vezes com episódios sangrentos, e que esteve na génese da reforma protestante. Para além de tudo isso, o cristianismo criou toda a espécie de dogmas e mistérios, muito frequentemente de enorme complexidade, tais como o da santíssima trindade, que levaram a profundos cismas (primeiro o cisma igrejas monofisitas orientais, depois o grande cisma entre igreja católica e ortodoxa por causa da tradução do filiusque).

O islão aparece também como uma evolução na continuidade, propondo-se como um monoteísmo puro (sem divindades de segundo grau), síntese dos dois monoteísmos anteriores, que segundo o Corão, devem ser respeitados (os profetas respeitados, e os seus fiés- "ahl al-kitab" protegidos pelos muçulmanos). Existe aí também uma necessidade de adaptação a novos fiéis, procurando erradicar hábitos religiosos pagãos das tribos de pescadores e beduínos das arábias (iconoclastia pura, proibição de adoração de génios, proibição da representação de imagens humanas ou de animais, proibição de práticas religiosas ou de meditação através da êxtase- daqui também a proibição do álcool e de substâncias narcóticas).

Parece-me que cada uma das grandes religiões monoteístas procurou, à sua maneira, e de acordo com as suas necessidades, adaptar o elevado grau de abstracção teológica do monoteísmo à sua comunidade de fiéis. O islão aparece, entre as outras duas, como a mais abstracta, não contando com quaisquer divindades intermédias, a mais simples (sem mistérios ou dogmas teológicos) e a mais descentralizada (não existindo uma estrutura religiosa organizada em termos canónicos, ainda que por vezes os poderes seculares tenham criado estruturas hierárquicas no clero islâmico: historicamente o califa de Bagdade e depois a Sublime Porta no império otomano assumiram as funções de Sheikh-al-Islam, mais ou menos o equivalente a papa). A simplicidade teológica, que se resume a cinco simples "pilares da fé" (profissão de fé exclusiva em deus, oração cico vezes ao dia, esmola aos desfavorecidos, jejum do Ramadão e pergrinação a Meca), é um dos factores que favorece a expansão do Islão.

Do aduzido discordo do Carlos. O Islão não é um plágio, mas um desenvolvimento das religiões anteriores, uma tentativa de síntese, e uma adaptação às realidades locais. Por outro lado, entendo ser uma religião que se pode perfeitamente conciliar com a modernidade, com o laicismo e com a ciência.

Frequentemente existe um alinhamento da opinião pública com a teoria do "choque das civilizações" de Huntington, entendendo-se o Islão como religião intrinsecamente reaccionária, anti-modernista, anti-científica e opressiva. Ora, entendo que o Islão não é nem mais nem menos opressivo ou obscurantista que as outras religiões. O olho por olho e dente por dente ou a submissão da mulher tanto estão presentes no Corão como na Torah, no Talmud ou no Novo Testamento, todos textos redigidos antes do Iluminismo. Se parte significativa do mundo islâmico actual é conservador, obscurantista, medieval, oprimido, tal deve-se mais a circunstancialismos de ordem económica e social do que meramente ao factor religioso. Afirmo isto baseando-me em dois argumentos:
1) na época áurea do islamismo (Sec. X a XIV), a civilização islâmica era mais próspera economicamente e mais avançada científica e tecnologicamente, gozando de mais paz e estabilidade comparativamente com a civilização cristã da alta idade média (a Idade das Trevas).
2) Existem, nos dias de hoje, sociedades predominantemente islâmicas, com razoável prosperidade económica, índices médios e até altos de desenvolvimento social e humano, e onde se entende o Islão de forma moderada (Malásia, Singapura, Turquia).
Não é o Islão que oprime, são as duras condições sócio-económicas que conservam o poder nas mãos de alguns que com o seu pretexto e com a sua interpretação dele oprimem.

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