As eleições autárquicas e a cidadania – Apelo ao voto

A ditadura salazarista criou reflexos antipolíticos que parecem perpetuar-se, como se a despolitização, criada pela repressão, tivesse sido geneticamente assimilada pelo medo.

Há quem tenha esquecido o partido único, a censura, os tribunais plenários, as prisões arbitrárias e as perseguições, quem desconheça as torturas, os despedimentos da função pública, os assassinatos de adversários políticos e a necessidade de atestados de batismo passados pelo pároco católico e os de bom comportamento, passados pelo presidente da Junta de Freguesia, para entrar num emprego público ou tirar, por exemplo, um curso de enfermagem. Mas há uma quantidade enorme de pensionistas que recorda, a sangrar por dentro, os horrores da guerra colonial, com 13 mil mortos e dezenas de milhares de estropiados, num país onde as eleições eram a encenação grotesca para sustentar a farsa.

Permitam-me os leitores que dê o meu testemunho de professor do ensino primário que em 1961 começou a dar aulas, aos 18 anos, sem qualquer direito a assistência médica ou medicamentosa, e tive de mudar de distrito, ameaçado pelo diretor, por me ter recusado a ir, com os alunos, esperar o presidente da República, um capacho de Salazar que dava pelo nome de Américo Tomás. Fui mobilizado para a guerra injusta e criminosa, onde perdi 4 anos e 4 dias da minha vida, 26 meses desterrado em Moçambique, sem que os portugueses pudessem ter invertido pelo voto o rumo vergonhoso da política fascista.

Nesse tempo o voto era exclusivo de vivos de confiança e mortos que, na farsa eleitoral, votavam na manutenção da ditadura, através dos membros das mesas eleitorais.

Em 1970 ainda se era perseguido por promover a inscrição de cidadãos nos cadernos eleitorais e apelar ao voto. Será possível, menos de 40 anos depois, apelar à abstenção? Que outra arma resta a quem não quer, não pode e não deseja a ilegalidade, para mostrar  ao poder o seu estado de espírito? Dizer que todos os partidos são maus é uma forma de cumplicidade com a inércia, a demonstrar difícil convivência com a democracia.

Os políticos e os partidos são imprescindíveis à democracia, único regime onde se pode discordar e participar livremente no associativismo e na vida sindical, e os políticos são, tal como nós, honestos ou desonestos, e independentemente dos partidos que servem.

Votar é um dever cívico irrenunciável. Não julgo quem o não faz, do mesmo modo que, não formulo, hoje, juízos de valor sobre os partidos, do Governo ou da oposição, mas apelo a todos para votarem no que a sua consciência recomendar.

Não votar é abandonar a luta que as associações, os sindicatos e os partidos políticos, de forma empenhada, prosseguem. Este é o meu testemunho e apelo de cidadão.

Os resultados das eleições autárquicas terão leitura nacional e perderá legitimidade para  contestar decisões políticas quem abdique da única arma disponível ao alcance de todos.

Comentários

Unknown disse…
Votar em Portugal é perpetuar esta pseudo democracia ditatorial onde predominam não um ditador mas vários.

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