O AO de 1990 e as úlceras gástricas que provoca



Deve-se à República a Reforma Ortográfica de 1911, que veio colocar um módico de uniformização na língua portuguesa, onde a profunda anarquia era a regra. O objetivo mais lato era a alfabetização do povo com maior índice de analfabetismo na Europa. A ortografia foi, pois, um desígnio de particular relevância para a República e é uma discussão que tem toda a legitimidade e interesse.

A crispação dos que se lhe opõem contrasta com a serenidade usual de quem o defende ou, simplesmente, se conforma com uma matéria que parece estar prestes a transitar em julgado.

Publicaram-se dezenas de artigos contra o AO-90 sem merecerem reparo de quem agora se amofina com a posição divergente. Débeis princípios republicanos de quem se irrita com o contraditório (minoritário) quando, há 24 séculos, Demóstenes, na Oração da Coroa, já defendia a necessidade de se ouvirem igualmente ambas as partes.

Quem invoca o notável romancista Eça de Queirós, ao atacar o AO-90, jamais dever ter lido uma só página na ortografia em que ele escreveu os seus inesquecíveis romances.

Ser a favor ou contra o AO são posições igualmente legítimas, mas é a lei, não a lógica ou a etimologia, que fixa a ortografia correta. O AO-90 teve o mérito de ser amplamente discutido, antes de muitos adversários terem acordado para a sua contestação.

Mia Couto, um dos maiores escritores atuais, escreve páginas “abensonhadas” pelo seu génio criativo mas desconheço se o adjetivo entre aspas cabe na sanha conservadora dos adversários do novo AO.

Quando Dilma Rousseff, presidente da República do Brasil, pretendeu ser tratada por presidenta, levantou-se em Portugal um coro de protestos e de anedotas, mas ninguém se deu conta de que a palavra pode entrar, em breve, no nosso vocabulário. As ministras do atual Governo ainda são governantes mas as mulheres que gerem o quotidiano do lar já são tratadas por governantas. Sucede que as infantas são antigas na língua portuguesa e Blimunda, pela pena do Nobel do nosso contentamento, perto da página 100 do Memorial do Convento, esperava uma parenta.

Muitos dos que se opõem às alterações, em nome de uma improvável pureza da língua, deixaram dicionarizar, sem reparo, um erro que, à força de repetido, por ignorância, se transformou em vocábulo corrente, «organigrama», em vez do correto «organograma».

São legítimas, na minha opinião, a discussão e a opção. Intoleráveis são os tratos a que prevaricadores ortográficos contumazes submetem o verbo haver, o género de «grama», milésima parte de quilograma, diferente do da erva ruim, e a incapacidade de distinguir, v.g., entre contasse e conta-se ou entre corrigir-mos e corrigirmos.

Amar a língua é cuidá-la, sem execrar as alterações ortográficas a que não são alheios interesses económicos

Comentários

m.a.g. disse…
Não pode provocar úlcera gástrica se o próprio AO já o é. Mais, é um tumor pouco diferenciado com disseminação galopante mormente para os seus utilizadores.
Como se vê, provoca hipercloridria.

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