Pailobo – uma aldeia privada das suas gentes
Quando aos 8 ou 9 anos, montado na albarda de uma burra com o dobro da minha idade e paciência, fazia sozinho uma longa jornada, havia de julgar-me adulto e envaidecido quando via alguém nos caminhos quase desertos que da Miuzela do Côa conduziam a Monte Perobolço, uma légua bem medida.
Só a inabalável afoiteza daqueles avós maternos, tão meigos e orgulhados do primeiro neto que lhes coube, permitia que confiassem à criança, a besta, a missão que levava e o dinheiro que pagava a mercadoria.
Partia de manhã, cedo, pela fresquinha, bem comido, com a burra aparelhada a preceito, a cilha bem apertada, não fosse a albarda virar-se, o cabresto ajustado e, sobre a manta garrida, os alforges destinados a regressarem cheios.
Já levava uma boa meia hora de caminho quando, montado na burra, passava o Noémi a vau, junto às poldras, a caminho de Pailobo. Era uma pequena aldeia com pouco mais de uma centena de habitantes onde logo era reconhecido e me perguntavam pelos avós, mas o peito inchava quando indagavam se ia sozinho, e viam bem que ia. A subida era íngreme, ou assim me parecia, desde a ribeira até à aldeia onde, à vinda, de tudo o que me ofereciam, aceitava, quando o sol abrasava, o púcaro de água fresca do cântaro de barro, da Malhada Sorda, que jazia na cozinha.
Pailobo era povoação pequena, comparada com a Miuzela, que tinha para cima de 800 pessoas, e era ponto de passagem obrigatório para quem se dirigia a Monte Perobolço, a menor distância do que a que a separava da Parada do Côa de cuja freguesia era anexa.
Em Monte Perobolço, saltava da burra, prendia o rabeiro à ferradura metida na parede, que servia de argola, e entrava no estabelecimento do Sr. José Simões que abastecia de tabaco as aldeias em redor. Era recebido com alegria, tão pequenino e vem sozinho da Miuzela, como vão os avozinhos, então a encomenda é grande, e lá puxava eu do papel onde a avó escrevia os nomes e quantidades de tabaco que pretendia.
As embalagens enchiam os alforges, do Kentucky, de 12 cigarros, conhecido por mata-ratos, com uma cinta onde se lia o preço de venda ao público, $80, até às caixas de 10 maços de 20 cigarros, de Português Suave, Paris ou Três Vintes (20-20-20), e aos mais populares Definitivos e Provisórios, grandes e pequenos, respetivamente com 24 e 12 cigarros. Onças de tabaco Superior e Holandês, com outros tantos livros de mortalhas, e cigarros de outras marcas, da Tabaqueira ou da Companhia Nacional de Tabacos, hoje desaparecidos e cujo nome fui esquecendo, completavam a encomenda.
Depois de criança voltei a Pailobo algumas vezes para comer as perdizes caçadas pelo Manuel da Cabreira, o famoso Manuel Caçador, a quem se pagava o dia de trabalho, os cartuchos, o chumbo, a pólvora e as buchas para abater à roda de vinte perdizes que a mulher, a Sr.ª Alice, estufava primorosamente . Era o tempo em que as perdizes eram mais numerosas do que os caçadores e, nessas tardes, com o meu tio Brardo, o Sr. Zé Rita, o Sr. Messias Pereira e outros, passávamos a tarde, bem comidos e bebidos, a jogar à sueca e a conversar.
Depois dos 20 anos não voltei a tal aldeia. Soube da existência de um cemitério, velho anseio do povo, que o 25 de Abril concretizou, quando surgiu o primeiro defunto capaz de gozar o melhoramento, não porque tivesse sido notícia a obra, mas porque o morto, o António Pereira, tratado por Seabra, recusou um cemitério privativo, ou alguém por ele, e, como era hábito, foi para o da Parada, destino usual para a defunção das pessoas de Pailobo. Outros morreram e ficaram nas terras onde acabaram os dias, antes do Manuel Pereira, o Micas, ter inaugurado o cemitério que, desde aí, passou a cumprir a função.
Em 23 de agosto de 2013 voltei a Pailobo. O fogo andou lá, há pouco, e os lanchais que descem até ao Noémi estão ardidos, só mostram as pedras tisnadas, como tisnadas estão as pontas dos arbustos que atravancam o caminho para Monte Perobolço. Foi pior, há anos, quando um pavoroso incêndio ligou a Miuzela a Pailobo, sem poupar a capela de Santo Antão, alheio à santidade do edifício e à aflição das pessoas.
Hoje, a capela está fechada, como cerrada está a capela do Calvário onde o patrono que decorava a fachada, S. Sebastião, foi apeado, e fechado dentro, por mor dos ladrões que não respeitam a memória pia do que foi uma pequena aldeia com gente, hoje espalhada pelo mundo, a recordar a procissão de 16 de janeiro, quando o andor de Santo Antão ia em visita a S. Sebastião e voltava, depois da missa, com foguetes e cânticos religiosos.
Junto à capela do Calvário ainda resiste o Cruzeiro que os da Parada já levavam quando um trator lhes franqueou a passagem e os obrigou a devolvê-lo à peanha que o sustenta.
Na aldeia moram agora três viúvas, uma de 87 anos, que vive sozinha, e outra de 91 que está acompanhada de uma filha, também viúva, mas, durante o inverno passado, só um homem de 55 anos, padeiro em Pínzio, que no regresso vende, em várias aldeias, o pão que ajuda a fabricar, foi o persistente morador celibatário, duplamente solitário.
A Sr.ª Maria Romeira, viúva de Messias Pereira, cujos 91 anos já referi, disse-me que o Zé Rita e a mulher, nascidos em 1913, estavam no lar de Vela, no concelho da Guarda. É rija aquela gente e o coração não renega a aldeia de Pailobo onde, no posto escolar em ruínas, trepava pela parede uma parreira com dois cachos em maturação tardia.
Nas casas abandonadas da aldeia saem dos telhados dezenas de antenas de televisão que o vento vai torcendo enquanto o silêncio toma conta do espaço onde a vida se extingue numa dolorosa metáfora do país que arde.
Só a inabalável afoiteza daqueles avós maternos, tão meigos e orgulhados do primeiro neto que lhes coube, permitia que confiassem à criança, a besta, a missão que levava e o dinheiro que pagava a mercadoria.
Partia de manhã, cedo, pela fresquinha, bem comido, com a burra aparelhada a preceito, a cilha bem apertada, não fosse a albarda virar-se, o cabresto ajustado e, sobre a manta garrida, os alforges destinados a regressarem cheios.
Já levava uma boa meia hora de caminho quando, montado na burra, passava o Noémi a vau, junto às poldras, a caminho de Pailobo. Era uma pequena aldeia com pouco mais de uma centena de habitantes onde logo era reconhecido e me perguntavam pelos avós, mas o peito inchava quando indagavam se ia sozinho, e viam bem que ia. A subida era íngreme, ou assim me parecia, desde a ribeira até à aldeia onde, à vinda, de tudo o que me ofereciam, aceitava, quando o sol abrasava, o púcaro de água fresca do cântaro de barro, da Malhada Sorda, que jazia na cozinha.
Pailobo era povoação pequena, comparada com a Miuzela, que tinha para cima de 800 pessoas, e era ponto de passagem obrigatório para quem se dirigia a Monte Perobolço, a menor distância do que a que a separava da Parada do Côa de cuja freguesia era anexa.
Em Monte Perobolço, saltava da burra, prendia o rabeiro à ferradura metida na parede, que servia de argola, e entrava no estabelecimento do Sr. José Simões que abastecia de tabaco as aldeias em redor. Era recebido com alegria, tão pequenino e vem sozinho da Miuzela, como vão os avozinhos, então a encomenda é grande, e lá puxava eu do papel onde a avó escrevia os nomes e quantidades de tabaco que pretendia.
As embalagens enchiam os alforges, do Kentucky, de 12 cigarros, conhecido por mata-ratos, com uma cinta onde se lia o preço de venda ao público, $80, até às caixas de 10 maços de 20 cigarros, de Português Suave, Paris ou Três Vintes (20-20-20), e aos mais populares Definitivos e Provisórios, grandes e pequenos, respetivamente com 24 e 12 cigarros. Onças de tabaco Superior e Holandês, com outros tantos livros de mortalhas, e cigarros de outras marcas, da Tabaqueira ou da Companhia Nacional de Tabacos, hoje desaparecidos e cujo nome fui esquecendo, completavam a encomenda.
Depois de criança voltei a Pailobo algumas vezes para comer as perdizes caçadas pelo Manuel da Cabreira, o famoso Manuel Caçador, a quem se pagava o dia de trabalho, os cartuchos, o chumbo, a pólvora e as buchas para abater à roda de vinte perdizes que a mulher, a Sr.ª Alice, estufava primorosamente . Era o tempo em que as perdizes eram mais numerosas do que os caçadores e, nessas tardes, com o meu tio Brardo, o Sr. Zé Rita, o Sr. Messias Pereira e outros, passávamos a tarde, bem comidos e bebidos, a jogar à sueca e a conversar.
Depois dos 20 anos não voltei a tal aldeia. Soube da existência de um cemitério, velho anseio do povo, que o 25 de Abril concretizou, quando surgiu o primeiro defunto capaz de gozar o melhoramento, não porque tivesse sido notícia a obra, mas porque o morto, o António Pereira, tratado por Seabra, recusou um cemitério privativo, ou alguém por ele, e, como era hábito, foi para o da Parada, destino usual para a defunção das pessoas de Pailobo. Outros morreram e ficaram nas terras onde acabaram os dias, antes do Manuel Pereira, o Micas, ter inaugurado o cemitério que, desde aí, passou a cumprir a função.
Em 23 de agosto de 2013 voltei a Pailobo. O fogo andou lá, há pouco, e os lanchais que descem até ao Noémi estão ardidos, só mostram as pedras tisnadas, como tisnadas estão as pontas dos arbustos que atravancam o caminho para Monte Perobolço. Foi pior, há anos, quando um pavoroso incêndio ligou a Miuzela a Pailobo, sem poupar a capela de Santo Antão, alheio à santidade do edifício e à aflição das pessoas.
Hoje, a capela está fechada, como cerrada está a capela do Calvário onde o patrono que decorava a fachada, S. Sebastião, foi apeado, e fechado dentro, por mor dos ladrões que não respeitam a memória pia do que foi uma pequena aldeia com gente, hoje espalhada pelo mundo, a recordar a procissão de 16 de janeiro, quando o andor de Santo Antão ia em visita a S. Sebastião e voltava, depois da missa, com foguetes e cânticos religiosos.
Junto à capela do Calvário ainda resiste o Cruzeiro que os da Parada já levavam quando um trator lhes franqueou a passagem e os obrigou a devolvê-lo à peanha que o sustenta.
Na aldeia moram agora três viúvas, uma de 87 anos, que vive sozinha, e outra de 91 que está acompanhada de uma filha, também viúva, mas, durante o inverno passado, só um homem de 55 anos, padeiro em Pínzio, que no regresso vende, em várias aldeias, o pão que ajuda a fabricar, foi o persistente morador celibatário, duplamente solitário.
A Sr.ª Maria Romeira, viúva de Messias Pereira, cujos 91 anos já referi, disse-me que o Zé Rita e a mulher, nascidos em 1913, estavam no lar de Vela, no concelho da Guarda. É rija aquela gente e o coração não renega a aldeia de Pailobo onde, no posto escolar em ruínas, trepava pela parede uma parreira com dois cachos em maturação tardia.
Nas casas abandonadas da aldeia saem dos telhados dezenas de antenas de televisão que o vento vai torcendo enquanto o silêncio toma conta do espaço onde a vida se extingue numa dolorosa metáfora do país que arde.
Comentários
Carlos Pinto
Relembro-me deste 'mundo' quando perante a vaga de incêndios que assola o País oiço políticos perorar (convictamente?) sobre a prevenção destes através da limpeza (do cuidar) das matas e florestas que - no passado - desempenharam um importante papel na 'economia rural'.
O caminho escolhido pelos que tem comandado o destino do País depois da II Grande Guerra foi no sentido de desvalorizar ou coarctar qualquer tipo ou via de desenvolvimento ao Interior seja através do acesso à Educação, do apoio a uma reforma fundiária (emparcelamento rústico), ao equilíbrio da floresta, do estímulo ao comércio local, ao cooperativismo agrícola e distribuição e ao desenvolvimento de infraestruturas básicas. Este caminho levou à rápida desertificação humana do espaço rural (foram 'só' necessárias 2 gerações...).
A actual horda de incêndios é o complemento e a consequência desta desertificação humana traduzindo o resultado esperado de uma desastrosa política de abandono.
A contemporização quando não a cumplicidade perante gritante opção por assimetrias (nada equitativas em termos de coesão nacional) que 'esmagou' o Interior perante o Litoral,'cavou' um profundo fosso entre os campos e as cidades que só podia gerar uma política de 'terra queimada'.
É o que de facto está a acontecer. Um terço da floresta já ardeu. O resto vai de arrasto.
A floresta tornou-se supérflua excepto para as holdings da celulose que encontram matéria prima mais fácil e barata em outras paragens.
A prevenção real, eficiente e estratégica dos incêndios nunca foi pensada nem realizada. No princípio não era necessária porque decorria da normal actividade rural. Os actuais tempos demonstram que a agora proposta prevenção deveria ter tido lugar há dezenas de anos quando a incipiente industrialização do País deslocou a massa humana para o Litoral e matou os campos transformando-os em 'matos' desabitados...
Agora, como se diz em Coimbra: 'Inês é morta!"
Ninguém tem tempo, nem dinheiro, para investir em 'negócios' ermos.
Pelo que a resposta ao actual drama dos incêndios será como este Governo gosta petulantemente de proclamar: uma 'reforma estrutural'. Que não está na agenda política nem provavelmente seria possível.
Inverter o curso da História é frequentemente muito doloroso...
Veja-se a 'Lei das Sesmarias'.
Um abraço para um conterrâneo. Fui colega de turma do ex-PGR Fernando José Pinto Monteiro, no liceu da Guarda, outro homem nascido em Porto de Ovelha.
Em férias, nos dias de mercado da Miuzela aproveitávamos para nos ver.
O mercado era na quarta quinta-feira de cada mês.
E, se o mundo atravessa uma era de retrocesso e incertezas, porque aqueles que o governam são produtos “fast food” que conhecem mas não sentem, há de ainda regressar ao bom caminho atraído pelo aroma das coisas genuinas, que valem a pena, pelo cheiro do estufado de perdiz, pelo cheiro do pão do forno a lenha - o regresso às origens, não à miséria do imobilismo salazarento.
O nosso drama é que continuamos como sempre fomos pouco ou nada acrescentámos àquilo que recebemos. Como respondia certo emigrante dos anos sessenta ao patrão. Perguntava o alemão “então Sr. Augusto o que é que vocês têm em Portugal?
“Olhe, temos tudo o que Deus nos deu: sol e praias lindos!”
E deu-nos muito. Simplesmente vivemos, ontem e hoje, confundidos por modas e foguetes que não são nossos. Ao invés de construirmos o nosso próprio destino, com dignidade, andamos subjugados por regras e ordens dos Senhores aceitando as moedas caídas no chão.
Temos andado por caminhos errados. Ao contrário do nosso herói que percorria caminhos “perigosos”, sem ser assaltado, para suprir as necessidades de tabaco de uma aldeia, revestido apenas da confiança dos seus avós, e da sua autoconfiança (com a certeza de cumprir a missão) os muitos caminhos que se entrecruzam no nosso trouxeram e trazem gente sem escrúpulos que nos enganam e roubam.
Como querem, os tais que nos governam, acabar com os fogos? Há tanto tempo repetem um discurso que é nada… Só sabe quem faz. Só faz quem conhece e sente.
Os tais conhecem mal e nunca fizeram. Ficam-se pelas palavras.
Sou um natural de Pailobo (sobrinho do Tio Messias Pereira ) e a leitura transportou-me para aquela época e despertou-me sentimentos que, só quem lá viveu, pode compreender.
Parabéns pela descrição.
Ainda não perdi a esperança de voltar a ver Pailobo com mais pessoas, mas isso só pode ser conseguido por aqueles que já lá viveram, fazendo aumentar as visitas e estadias, à medida que a idade aumenta.
José Pereira Fernandes
filha do Sr Joaquim Pires (já falecido)
creio que todos os naturais de Pailobo têm por esta terra, que a sua, um carinho que se não pode medir.
No meu caso sou o teu vizinho nas trazeiras da casa dos teus pais.
Estou a desenvolver contactos no sentido de criar um blog para as gentes de pailobo e seus descendentes. Gostaria de ter contactos (email) dos decendentes pois são esses que podem fazer com que a terra não morra. O meu email é: jfernandes1952@gmail.com.
Um abraço.
José Fernandes
Benvinda Diana.
Como não estou lá digo apenas que fico satisfeito por alguém ter pisado o chão da minha terra
e tenha achado bonita a paisagem.
É na verdade muito bonita. Coisas de Pailobo pode encontrar num grupo criado no FBook onde nos vamos vendo e lendo.
Um abraço
JFernandes
José Catarinacho