Em nome da liberdade

As suscetibilidades pias são um episódio na escalada contra a laicidade. A substituição do direito divino pela soberania popular foi um passo para a democracia e uma grande deceção para o clero.

A liberdade é um bem escasso. Limitada pela opressão dos Estados, tolhida pelo medo individual e fanatismo religioso, precisa de quem a defenda contra tudo e contra todos.

A publicação de caricaturas de Maomé desatou, há anos, a ira do Islão e os desacatos, ameaças e violência do fascismo islâmico. Os cristão opor-se-ão ao escárnio do calvário de Cristo ou da virgindade de Maria, e a liberdade de expressão regressará ao escrutínio dos clérigos que ao longo dos séculos oprimiram a Humanidade.

Recordamo-nos do trauma das perseguições da inquisição, da celeuma do preservativo colocado em sítio menos óbvio – o  nariz de João Paulo II –, pelo cartoonista António e do assassínio de um médico por um pastor evangélico, na sequência da prática de um aborto, nos EUA.

Temos o direito de caricaturar Deus, afirmou então, em França, o jornal France Soir, após a publicação dos desenhos de Maomé: «OUI, on a le droit de caricaturer Dieu».

Se nos deixarmos tolher pelo medo, não tarda que o poder seja de novo confiscado pelo clero, que sempre reivindicou procuração divina, e que sejam postos em causa direitos, liberdades e garantias arduamente conquistados ao longo dos séculos.

Dar publicidade aos testemunhos de irreverência, humor e heresia não é provocação aos crentes, é um ato de cidadania em defesa da liberdade de criação, uma ousadia contra a chantagem, uma advertência de quem resiste ao medo, à violência e às bombas.

Não faltarão cobardes a dizer que «deve haver um certo cuidado» e que «talvez não seja sensato». A pusilanimidade não conhece limites.

Defender o direito à blasfémia é um ato de solidariedade para com criadores artísticos, órgãos de comunicação social que os acolhem e países que não se vergam à histeria da fé e ao fascismo religioso. É também uma forma de homenagear Salman Rushdie cuja condenação à morte teve do Vaticano, do arcebispo de Cantuária e do Rabino Supremo de Israel uma posição favorável ao aiatola Khomeini quando, na sua piedosa demência, o condenou à morte, pelo abominável crime de…ter escrito um livro.

Se os crentes, de qualquer fé, por mais idiota que seja, entenderem caricaturar os ateus, apelidá-los de burros, idiotas e patetas, estão no seu direito. Todos temos de aprender a tolerar o direito de opinião dos que discordam de nós, por mais injustos e provocadores que sejam. O direito de expressão tem de estar acima do direito à repressão.

Quando o grotesco Califado com que gerações de jihadistas sonharam acaba de nascer entre a Síria e o Iraque, e os facínoras da fé instauram o Estado islâmico nos territórios que controlam, não há caricaturas e insultos que bastem, urge repor a salubridade nos territórios que as mesquitas e madraças ameaçam tornar insalubres. Por todos os meios.

Comentários

e-pá! disse…
Durante muito tempo a Esquerda - na generalidade este conceito encerra - optou por advogar posições que hoje levantam muitas interrogações: 'Não criar ou alimentar uma questão religiosa artificial onde ela na realidade não existe, foi o lema. De facto, resta saber se não existe mesmo ou se a questão é tão artificial como se apregoa.

A relutância em enfrentar a presença da(s) religião(ões) nas questões políticas tornou bem notório e evidente o reverso dessa medalha.
A pregação da 'salvação' e exaltação do 'obediente conformismo' são duas armas que a doutrina neoliberal utiliza para vencer resistências e camuflar evidências que têm permitido capturar os centros de decisão política e colonizar o Estado.

A última crise financeira tem dado sucessivos e paradigmáticos exemplos de que a separação entre a Igreja e o Estado é um bem de enorme dimensão.
Aliás, é a própria Igreja que, nos momentos duros e indefinidos, dá o exemplo (pela negativa).
Para ficarmos por uma pequena parte do problema basta ter a noção da maneira como foram tratados os interpretes da 'Teologia da Libertação'... E os argumentos que se usaram para calar (e assassinar) esse movimento.

Insuportável é viver neste permanente 'jogo de sombras' que se arrasta desde há milénios,

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