Harry e Meghan: o ilusionismo da nobreza?

A realeza ainda estrebucha no Velho Continente. Os casamentos reais sucedem-se com pompa e circunstância. Pior, desencadeando manifestações de euforia e ‘encantamento’ entre as plebeias populações. Ninguém conhece a verdadeira expressão desta adesão cujos contornos estão pejados de adereços alienantes.

O casamento de Harry e Meghan é o exemplo mais recente. Mas esta esplendorosa alienação não aparece sem, à mistura, surgirem percalços alarmantes aparentemente abafados pelo ‘barulho das luzes’.

O primeiro sintoma de que algo de errado estaria a ocorrer trata-se da epidérmica reação de matriz anglo-saxónica à origem étnica da noiva. Muita tinta correu sobre a sua filogenia rácica que se entronca numa miscelânea muito comum nos EUA.
Os sibilinos relatos de escândalos e as perversas investigações sobre a família de Meghan – que contaram com a colaboração da parte desavinda dos parentes da noiva - revelam algo que tem sido uma constante, permanentemente disfarçada, da realeza europeia (e não só britânica): a discriminação racial que aprofunda o fosso social (classista) onde hereditários atributos nobiliárquicos, de idoneidade duvidosa e fátua, se pretendem justificar e, pior, eternizar-se.
 
Os preconceitos de ‘pureza rácica’ que estiveram sempre presentes nas tradicionais linhas dinásticas não estiveram longe desta polémica.
Meghan Markle tem sangue negro e, muito embora o Império Britânico tenha sido um dos maiores colonizadores africanos, essa ‘mancha’ ainda choca a decadente aristocracia britânica e alguns dos anglicanos plebeus reféns de um puritanismo obsoleto. Nunca a realeza britânica se misturou com (ou em) África e esta nova via de conjugação através de uma cidadã do Novo Mundo necessitava de ser digerida (com mais ou menos escândalos do tipo dos da ‘literatura  cor-de-rosa’).
 
Mais difícil será prever o futuro ou conter a evolução social e cultural das sociedades contemporâneas.
O que pensarão os ditos ‘súbitos’ sobre as ‘questões fraturantes’ que os novos tempos estão a introduzir, por todo o lado, no ambiente social. Que pensariam, ou como reagiriam, os fleumáticos britânicos se um putativo rei, ou rainha, ou príncipe, se casasse com alguém do mesmo sexo?
Fica aqui esta ‘pedrada’ para ser dirimida pelos círculos monárquicos com os ‘instrumentos tradicionalistas’ que costuma esgrimir.
 
Mas toda esta encenação à volta de aristocráticas alianças (no passado) e/ou mediáticas uniões (do presente) tem razão de ser. Os alinhamentos políticos e alianças estratégicas deixaram de passar por conúbios de sangue (de alarmante consanguinidade) algumas vezes de interesse patrimonial (golpes de baú e outorgas de condados, ducados, etc. ) ou de conveniência política e negocial (‘fusão’ de reinos e alargamento de impérios) e, muitas vezes, bélica (guerras majestáticas por procuração e afirmação).
Na realidade, os paços reais e as venais cortes onde a intriga campeava e a prepotência imperava, sempre com a bênção de uma religião, foram sendo progressivamente sendo substituídos por organismos internacionais que são os atuais fóruns reguladores de interesses mundiais (regionais, nacionais ou continentais).
Os equilíbrios políticos e institucionais modificaram-se e a aristocracia tenta o seu aggiornamento com pretensas e contraditórias mutações como sejam as ‘princesas do povo’ e outras fantasias. Numa arcaica conceção dos 3 Estados (Clero, Nobreza e Povo) que ainda reside na cabeça da 'fidalguia', todas estas misturas são suspeitas.
 
As casas reais que foram primeiro esvaziadas (do seu poder e arrogância) pelo fim do absolutismo (Revolução Francesa), pela transfiguração democrática do invocado ‘direito divino’ nas monarquias constitucionais e, finalmente, pela emergência, por todo o lado, de regimes republicanos. Tornou-se inconcebível o estrebuchar à volta do velho paradigma de uma representatividade dinástica baseada na herança de sangue que, em tempos não muito recuados, já foi de ‘direito divino’.
 
Os casamentos reais – onde ainda são possíveis de se realizar e/ou popularmente exaltados - são pretextos para promover a distensão social e vender intangíveis sonhos. O 'marketing nobiliárquico' tenta afirmar-se como um novo 'mercado de ilusões'.
 
De facto, perante o desenrolar de eventos reais, com exaustivo aproveitamento mediático, a memória da velha e clássica democracia ateniense (V século AC), de índole republicana, onde os direitos dos cidadãos viram a luz do dia, entre eles o da igualdade, deveriam fazer-nos reflectir sobre a ‘polis’ e fazer-nos por os pés na terra, interrompendo os idílicos devaneios que, ontem, nos bombardearam.
 
Hoje, domingo, será dia de limpar o lixo, os dejectos e as excrescências da boda e amanhã mais uma dura jornada de trabalho (para a plebe)…

Comentários

Jaime Santos disse…
Carlos Esperança, este republicano (com 'r' pequeno, bem entendido) gostaria de lhe lembrar que a polis democrática grega se afundou por causa do imperialismo de Atenas sobre as restantes cidades, mas também pelas suas próprias contradições internas, a começar pela manipulação das multidões pelos demagogos (a versão original daqueles a quem hoje chamaríamos populistas). O episódio da condenação coletiva à morte dos Strategoi de Arginusa deveria fazer-nos pensar sobre o quão pouco os nossos problemas com regimes em que a palavra é dada ao povo de facto mudaram...

Nesse sentido, a existência de intâncias de mediação, de natureza claramente aristocrática, nas monarquias constitucionais ou nas repúblicas, tem uma importância absolutamente central. Não esquecer que os republicanos originais da América rejeitavam a palavra democracia (que associavam à anarquia) em favor da república de inspiração romana e aristocrática. E não esquecer ainda, justamente, a inexistência de sufrágio universal durante a nossa I República, uma característica sua claramente anti-democrática.

À parte o carácter folclórico de iniciativas como os casamentos reais, ou o carácter intrinsecamente desigual de Estados onde ainda subsistem ordens, cabe olhar com algum respeito a estabilidade de instituições como a monarquia britânica, ou as suas congéneres do Norte da Europa...

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