TAXIS: novas chances e/ou o espectro de uma ‘morte assistida’…
O chumbo de Marcelo à chamada ‘Lei Uber’ link traz novamente à liça o sub-reptício afã de refazer do ‘Bloco Central’ (que votou o diploma).
A clandestina informalidade deste sinuoso caminho deixou de ser um assunto disfarçável. Pensar que foram exceções ou acidentes de percurso os acordos em relação à descentralização e os fundos comunitários poderá ser demasiado ingénuo.
O sector dos transportes individuais (táxis) é uma área regulada desde há muito. A sua identificação visual do veículo é obrigatória desde os tempos da II Guerra Mundial (1942) e a discriminação pictórica - preto por baixo/verde por cima – foi introduzida em 1961. A emissão de alvarás para este tipo de transporte é da competência das Camaras Municipais e visa manter sob regulação este sector dos transportes.
Tal facto não impediu que se fossem consolidando autênticos carteis e desencadeasse um chorrilho especulativo à volta das transações de alvarás.
Há alguns anos ouvi contar a seguinte historieta – ao que suponho imaginária - fruto de uma endémica desregulação dos ‘negócios’ através das inefáveis ‘cunhas’ : um influente cacique paroquial ajudou um colega e amigo nas tarefas de candidatura para deputado. Uma vez eleito para o cargo o ‘padrinho eleitoral’ apresentou a sua fatura. Solicitava um alvará para um ‘carro de praça’. O recém-eleito deputado tomou a peito tal tarefa. Foi diferindo sempre a resolução desta demanda. Na verdade, não conseguia de facto ultrapassar os entraves burocráticos, nem vencer as barreiras (de influencias) erguidas em redor de uma procura desmesurada. Uns meses mais tarde foi obrigado a reconhecer perante o amigo que não tinha capacidade para a retribuir o favor eleitoral em dívida mas, de imediato, adiantou: “O alvará não consigo, mas se quiseres arranjo-te para amanhã uma licença para a abertura de uma Universidade. Serve?”.
Adiante.
Na verdade, o serviço de táxis é objecto de múltiplas queixas. Desde as más condições do material circulante, à irascibilidade prepotente dos ‘chauffeurs’ (vamos usar uma denominação arcaica), a casos de sobrefacturação, etc., existe um conjunto de situações que necessitam de mudar. Os taxistas iniciaram uma deriva transitando paulatinamente do serviço público para o ‘frete’ (na ampla concepção do conceito). Sofreram o desgaste rotineiro de um sector que se enquistou porque ao longo dos anos foi-se fechando demasiado.
Todavia, uma coisa é reformar um sector tradicional que perdeu a capacidade de renovação, desenvolvimento e afirmação por circunstâncias detectáveis, outra será faze-lo colapsar sob o desafio de novas plataformas tecnológicas embrenhadas de um espirito neoliberal, sedento de uma liberdade mercantil que se aproxima da total desregulação.
Não sou um utilizador habitual dos táxis. Fui, na minha meninice, um utente dos velhos e ronceiros 'carros de praça' e tenho gratas recordações desses ancestrais meios de transporte num ambiente em que a mobilidade era reduzida. Não gostaria de constatar que esse específico sector com uma longa história, amanhã - ou num espaço de tempo reduzido - fosse trucidado por uma (ou várias) plataformas em rede através de software comunicacionais detidos por multinacionais, operando num ‘mercado livre’ à boa maneira dos ditames da ‘Escola de Chicago’.
Quanto mais não seja pela nostalgia que retenho acerca de um famoso filme de Scorsese (Taxi Driver).
Na realidade o ofício de taxista precisa de remodelação, ajustamentos, melhores condições e necessitará, para além das habilitações profissionais específicas, que a preparação para o desempenho disfrute de programas de formação dedicados já que se trata de uma profissão que, em certos aspectos, presta um serviço público (mais visível e sensível nos recônditos lugares do interior). Será um negócio privado encaixado num serviço público (encarando a generalidade dos transportes e da mobilidade). A resposta a estes problemas não poderá ser assimétrica. Os táxis, melhor os ditos ‘carros de praça’, não deverão ser escorraçados das grandes urbes e ser enxotados para o País interior onde tudo defina.
Como fazê-lo?.
É difícil enunciar uma resposta cabal e adequada que seja capaz de poupar o País a mais um episódio de descaracterização à volta da extinção de uma atividade tradicional (ia dizer artesanal). Todos estaremos de acordo que é imperioso modernizar o serviço, dando-lhe capacidade para oferecer uma resposta qualificada aos utentes (passageiros) capaz satisfazer momentâneas e, por vezes, imprevisíveis necessidades de mobilidade básicas e quotidianas.
O veto de Marcelo Rebelo de Sousa abre aquilo a que os economistas gostam de designar como sendo ‘uma janela de oportunidade’. Queiram os representantes do povo sediados em S. Bento tentar preservar esta atividade naquilo que tem de bom e especifico e, por outro lado, suster uma onda neoliberalizante que ameaça fazer submergir (mais) um nicho económico e profissional centenário na espuma dos oligopólios que nos encharcam. A compatibilização entre um sector taxista tradicional que tenha capacidade para se reformar e as novas plataformas e transportes recheada de aplicações informáticas não será de todo impossível.
A sacrossanta lei da concorrência precisa de ser controlada (regulada) sob pena de ficarmos sufocados pelos escombros do permanente desabar de particulares e profundas referências (longe de qualquer saudosismo). Na verdade, um sector anquilosado e em crise relativa mas habituado a ser regulado tende, com a nova legislação, a mergulhar na mais completa ‘balda’.
Por outro lado, o conceito fundamental de mobilidade, propriedade sempre procurada pelo Homem desde a invenção da roda e adotada por várias civilizações para a afirmação hegemónica, poderá estar a um passo de mudanças radicais.
O automóvel poderá - daqui a alguns anos (podem não ser muitos) - deixar de ser o instrumento central dessa mobilidade. Novas tecnologias deverão resolver problemas que a ‘mobilidade automobilizada’ criou. Dificuldades crescentes nas megapolis devidas a saturações de tráfico (engarrafamentos) e o efeito deletério ambiental não se contornam com a simples substituição dos motores de combustão. Poderá estar na forja a criação de novos veículos. Estes poderão ser completamente diferentes dos atuais.
Os primeiros sinais estão à vista: os novos veículos conectados às novas tecnologias capazes de interagir com o meio envolvente associados a outras características, como seja a total autonomia o que lhe permitirá dispensar o contributo de um condutor.
Os táxis, os taxistas e o atual modelo de mobilidade estão ameaçados pela evolução tecnológica. Esta caminhada não se cinge às inovador plataformas do tipo Uber que mais parecem um efémero interposto desta alucinante caminhada encetada pela ‘revolução tecnológica’.
Na verdade, esta inovação assente em plataformas tecnológicas acessíveis por smartfhones - mais uma vez - não será para todos. Chegará aos grandes aglomerados citadinos, vem muito no encalço da errância turística que presentemente nos deslumbra e condiciona o crescimento, mas dificilmente atingirá o interior do país onde as autoestradas e vias rápidas não passam de veredas e trilhos e a tração – que já não sendo animal – pouco mais vai além do motocultivador, do trator e do ‘caixa aberta’. Os TVDE’s são à nascença seletivos e discriminatórios da globalidade (integridade) nacional.
Muitas vezes os políticos repetem uma famosa frase de Keynes: ‘In the long run we are all dead’, i. e., ‘no futuro estaremos todos mortos’. Esta verdade axiomática trazida para a política significa que as particularidades e especificidades no domínio da vida de relação humana devem continuar a influenciar as decisões políticas que necessitam de ter em conta o passado, o presente e o futuro.
O incómodo de toda esta arenga é que esta argumentação vai ao encontro das razões invocadas por Marcelo para vetar a ‘Lei Uber’. A sociedade liberal de alguns colide com a visão planificada e regulada de outros. Há, todavia, pontos de contactos que – acidentalmente - nos surpreendem. Fiquemos pelo acidental para não cair na lamechice das afetividades..
Seria bom que os taxistas que, ao longo de mais de um século prestaram um serviço aos cidadãos (com altos e baixos), tivessem uma morte digna, sem serem liminarmente sacrificados no altar tecnológico. Todos dispensaremos a oferenda social de um horrível espectáculo subsidiário de uma lenta asfixia (‘plataformizada’ ou não).
Finalmente, seria reconfortante que os táxis e os taxistas, na reapreciação a ‘Lei Uber’, não fossem envolvidos no precipitado capítulo - politicamente já agendado - da ‘morte assistida’.
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