Desventuras de um surdo – Crónica

Já sexagenário dei-me conta dos braços curtos, a precisarem de alguns centímetros mais para ler o jornal. E a necessidade de revalidação da carta de condução automóvel levou-me ao oftalmologista. Para minha surpresa, antes de me passar o atestado médico, disse que precisava de usar óculos. E saí com o atestado e uma receita para os óculos.

E assim andei, desde então, a mudar de lentes, por prescrição médica, e de armação por habilidade da vendedora. Até hoje.

Há cerca de dez anos, por rebelião doméstica sempre que ligava a TV, admoestado pelo incómodo do ruído a tímpanos sensíveis, fui à consulta de um médico da especialidade. Depois do audiograma e de outros exames, ouvi da jovem especialista a ameaça: tenho de o aparelhar. Fiquei estupefacto, mas não acreditei que a jovem médica, em contraste com a simpatia, me considerasse uma cavalgadura a quem quisesse colocar arreios.

Não sendo também pedra ou madeira a precisar de ser cortado ou desbastado, nem tela a precisar da primeira demão para pintura, ou navio à espera de velas, mastaréus e vergas, concluí que a ameaça de aparelhar não passava da intenção de me guarnecer as orelhas com quaisquer equipamentos para melhorar a audição.

Tive, aliás, a confirmação quando me deu a lista de empresas que vendem os aparelhos que ampliam o som. Não fui logo a correr. Segui o sábio conselho do saudoso médico de Almeida, Casimiro Matias, a jovens colegas e a respeito de novos fármacos: não se pode ser tão apressado como os garotos que correm à frente das procissões para apanhar as canas dos foguetes nem tão lento como as beatas que vão na cauda a rezar o Bendito. O contexto era diferente, mas o conselho é sábio, e serve para outras situações.

E assim andei algum tempo até que a coação doméstica obrigou a deixar-me aparelhar. Depois de experimentar vários equipamentos e de ficar aliviado de quatro mil e muitos euros, lá vim convenientemente aparelhado.

Não se pode dizer que passasse a ouvir muito melhor, mas passei a gozar de maior compreensão. Os aparelhos têm idiossincrasias, coisa de admirar em objetos, mas a sua vocação para sobreporem ruídos à voz humana é prodigiosa. Qualquer motor a trabalhar a dezenas de metros abafa as vozes de uma conversa. É a vida!

Após quatro anos os aparelhos ameaçaram abandonar-me. Não sei como acertaram no prazo de validade. Durante a garantia portaram-se como deviam. Depois, deram sinais de exaustão. Enfim, resignei-me a substituí-los, sem esperar milagres. Há, de resto, palavras que desisti de entender. Quando oiço sessenta ou setenta pergunto sempre se é com seis ou com sete. Sucede, aliás, o mesmo com vocábulos de consoantes fricativas e sibilantes, selo, zelo, onça, seixo, tanso e outras, que só capto no contexto de uma frase.

Parti pouco estimulado para decidir a compra de novos aparelhos e pedi à minha mulher para me acompanhar. Era ela que insistia, mais uma vez, na compra que eu entendia não valer cerca de cinco mil euros para tão modesto benefício.

Foi assim que a minha mulher assistiu à consulta que precedeu a compra dos aparelhos ou, pelo menos, a parte dela com a audiologista, uma senhora cuja profissão e respetiva designação só tinha conhecido há quatro anos.

Depois do audiograma a audiologista pediu-me para repetir várias palavras pré-gravadas que saíam do gravador. Não garante o protagonista e ora cronista que as ouvidas, que tentava repetir, fossem as que a seguir se leem, mas é um esforço de reconstituição que os leitores hão de relevar.

E foi assim que procurei reproduzir o que ouvia, em voz arrastada, talvez… uivo, tanso, selo, zelo, onça, seixo, tanso, xadrez, palavras que, uma a uma, procurei reproduzir, bem ou mal.

Parti depois para o mesmo teste já com aparelhos novos. O gravador disparou a primeira palavra, talvez saia, e deve ter sido bem diferente a que reproduzi, como a seguir me dei conta. Mais uma palavra, igualmente imaginada, como todas, pelo cronista: xaile… e aí, a minha mulher, que já tinha reprimido o riso ao ouvir saia, não aguentou mais. Soltou uma sonora gargalhada e, pedindo desculpa, abandonou apressadamente a sala insonorizada.

Aqui, hei de ter recordado o professor de História no liceu da Guarda, José Vilhena, que já era surdo quando foi professor da minha mãe e era objeto do gozo, meu e dos meus colegas, quando lecionou a mesma cadeira na minha geração. As anedotas sobre surdos despertam gargalhadas e sei porquê há muitos anos.

A audiologista continuou o audiograma vocal em campo livre, sem testemunhas além do cliente, interessada na venda: pré…, véu…, sua…, e eu a notar a sua surpresa e desânimo, … vais… e, aqui chegada, levantou os braços e, antes de me convidar a devolver os aparelhos, exclamou, desculpe, desculpe, não liguei os aparelhos.

Coimbra, 26 de outubro de 2024

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